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Ricardo Abramovay

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O elefante na sala da COP26: combustíveis fósseis não podem ser baratos

COP26 - Ativista da Ocean Rebellion protesta contra a pesca de arrasto antes da COP26 em Glasgow, Escócia - DYLAN MARTINEZ/REUTERS
COP26 - Ativista da Ocean Rebellion protesta contra a pesca de arrasto antes da COP26 em Glasgow, Escócia Imagem: DYLAN MARTINEZ/REUTERS

Colunista do UOL

02/11/2021 04h00

Nenhum país tem condições melhores que o Brasil para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Este privilégio não vem do avanço de nossa competente pesquisa científica ou de avanços tecnológicos espetaculares, mas do fato de que somos hoje a única nação em que metade das emissões deriva de desmatamento.

Por mais difícil que seja zerar o desmatamento (especialmente com governantes coerentes com o que haviam anunciado na campanha eleitoral e que vêm desmontando todo o aparato institucional voltado à preservação das florestas e dos territórios protegidos no país), isso não se compara ao desafio de estimular a emergência de uma vida econômica que não esteja organizada em torno do uso em larga escala de combustíveis fósseis.

O mundo empresarial está globalmente comprometido com a busca de técnicas que permitam produzir, gerando cada vez menos gases de efeito estufa. A própria indústria automobilística parece estar dando uma guinada neste sentido, como mostra a entrevista de Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea, mostrando a urgência de "objetivos claros para a descarbonização". São inúmeras as associações empresariais que procuram mobilizar as companhias para emissões líquidas zero. É crescente — embora, muitas vezes, apenas retórico — o compromisso do setor financeiro e dos bancos centrais com a descarbonização. O barateamento das energias renováveis modernas, da armazenagem de energia, do hidrogênio verde e do biogás, oferecem base material sólida para transformações muitas vezes disruptivas.

Mas contar fundamentalmente com as iniciativas do setor privado para combater a crise climática é tapar o sol com a peneira. E, por maior que seja a consciência dos consumidores sobre o tema, não é da iniciativa de cada cidadão que poderá vir o impulso para que os mercados rejeitem produtos poluentes.

A responsabilidade primeira e mais importante é dos próprios governos e seu ponto de partida resume-se a uma expressão que dificilmente poderia ser mais impopular: taxação do carbono. Esta taxação precisa ser suficientemente alta para dissuadir rapidamente o uso de combustíveis fósseis — quanto maior a procrastinação em torno deste objetivo, quanto mais se alimentar a ilusão de que o setor privado e os consumidores vão acabar por preferir produtos não poluentes ou que as novas tecnologias vão deslocar as até aqui predominantes, mais desorganizada e custosa será a transição e piores serão os impactos dos eventos climáticos extremos.

A ideia, defendida há anos pelo prêmio Nobel de Economia William Nordhaus, foi retomada recentemente, num relatório encomendado pelo presidente Macron a Jean Tirole, prêmio Nobel de Economia (2014) e professor da Toulouse School of Economics e Olivier Blanchard economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (2008-2015) e professor do Masschussets Institute of Technology. Celebridades acadêmicas como Philippe Aghion, Dani Rodrik, Nick Stern, Paul Krugman e Laurence Summers também compõem a equipe que abordou aquilo que consideram os três mais importantes problemas globais: mudanças climáticas, avanço das desigualdades e envelhecimento.

Trinta anos após a Rio-92, e apesar do forte engajamento do setor empresarial e da sociedade civil, as emissões continuam subindo e a retomada econômica pós-pandemia não a está atenuando. De todos os investimentos globais realizados para a recuperação econômica pós-pandemia por países do G20, apenas 18% estão comprometidos com a descarbonização da economia e 90% destes investimentos verdes concentram-se em apenas sete países: China, França, Alemanha, Japão, Coreia do Sul, Espanha e Reino Unido. Dos membros do G20, os investimentos considerados como "altamente negativos" concentram-se na Argentina, na Austrália e no Brasil, segundo pesquisa da Universidade de Oxford, da Rede de Políticas Fiscais Verdes, da OCDE e do Programa para o Meio Ambiente das Nações Unidas, citada no Emissions Gap Report de 2021.

Em outras palavras, apesar do vigor dos discursos empresariais, mesmo após o trauma da covid-19, os dados sobre investimentos para a retomada pós-covid mostram que a economia global continua travada em iniciativas que tendem a perenizar e não a reduzir as emissões. Este horizonte não vai se modificar enquanto as atividades que destroem o mais importante bem comum da humanidade — o sistema climático — não tiverem custos significativos para as empresas e para os consumidores.

O problema é que uma taxa carbono sobre os combustíveis fósseis tende a penalizar os mais pobres e os mais dependentes do uso de automóveis ou motos (como os trabalhadores precários de aplicativos, por exemplo). O que está em jogo aí é a repartição social dos custos da transição. O movimento dos Coletes Amarelos na França, quando Macron tentou aumentar de forma consistente os impostos sobre os combustíveis fósseis, mostra o quanto o tema é politicamente delicado. O anúncio da greve dos caminhoneiros no Brasil também aponta na mesma direção.

Para enfrentar o problema o relatório Blanchard/Tirole propõe que se utilizem os recursos derivados da taxação dos fósseis para financiar transferência de renda para os mais pobres. Apesar da consciência sobre a gravidade da crise climática e mesmo sob a perspectiva de que as perdas decorrentes da taxação do carbono podem ser compensadas, a maior parte das pessoas se opõe a este imposto, segundo pesquisa realizada na França em 2020. Pior: a oposição à taxa era ainda maior entre os que estiveram fortemente engajados no movimento dos Coletes Amarelos. Colocados diante de evidências mostrando que a taxa poderia ser benéfica a eles e aos mais pobres, ainda assim, eles a rejeitavam. A recusa é tão importante que a Convenção Cidadã pelo Clima não aceitou incluir a taxação do carbono em suas proposições.

A taxação do carbono em níveis capazes de inibir o uso de combustíveis fósseis e a redistribuição desta arrecadação entre os mais pobres é a proposta com maior chance de se aproximar da ambição de justiça climática. Ao mesmo tempo, é o elefante na sala da Conferência de Glasgow e, ao menos até aqui, são tênues os sinais de que ela poderá ser alcançada, mesmo diante das evidências de que é ilusório imaginar o progresso das alternativas sem a sua adoção.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL