Topo

Ricardo Abramovay

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Oposição aos direitos sexuais e reprodutivos mostra rejeição à democracia

Protesto por direitos reprodutivos e sexuais na Tailândia - SOPA Images/LightRocket via Gett
Protesto por direitos reprodutivos e sexuais na Tailândia Imagem: SOPA Images/LightRocket via Gett

Colunista do UOL

16/03/2021 04h00

Confirmando o fanatismo ideológico que hoje orienta suas decisões governamentais, o Brasil juntou-se à Hungria, à Polônia e a alguns países do Oriente Médio negando-se a endossar o documento da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, lançado no dia 8 de março, que fala em direitos das mulheres. O argumento é a oposição de nossos representantes à expressão "direitos sexuais e reprodutivos".

Como mostra reportagem de Jamil Chade, formou-se um grupo de países ultraconservadores, autodenominados "Consenso de Genebra", que se propõe a bloquear qualquer referência à saúde sexual e reprodutiva em documentos internacionais. Mais que isso: uma vez que o governo Biden rompeu com as políticas que inspiravam o cínico moralismo obscurantista, que via nos "direitos sexuais e reprodutivos" o elogio à pedofilia e ao aborto, o Brasil é que está assumindo a vergonhosa posição de líder neste macabro pacto do atraso.

O perigo da posição brasileira é duplo. Em primeiro lugar, porque nega o elemento mais importante para que as pessoas possam tomar decisões com base em sua autonomia e sua responsabilidade: a informação. E a informação de qualidade quanto à saúde reprodutiva e sexual das mulheres supõe não apenas profissionais qualificados para divulgá-la, nas escolas e nas comunidades, mas também uma estrutura de atendimento à saúde que só pode ser um serviço público. Por isso, como insiste antropóloga Débora Diniz, "a laicidade importa para as políticas de saúde".

Cultivar o medo da informação sobre a saúde reprodutiva e sexual das pessoas converteu-se em tática política. A principal razão para isso está no empenho em que um assunto de evidente interesse público seja transformado em um tema que se confina aos limites da vida privada ou, no máximo, da comunidade religiosa. É claro que nem sempre as comunidades religiosas compactuam com o obscurantismo — e não são poucas as que a ele se opõem.

Mas negar o direito à informação e aos serviços que garantem a saúde reprodutiva e sexual das mulheres é uma forma de restringir sua capacidade em tomar decisões. É contrapor o que diz a ciência, a técnica médica e o valor universal da dignidade e dos direitos humanos a soluções particulares, correspondentes a crenças localizadas e pertencentes a certos grupos.

Com isso, a autonomia da mulher é amputada e substituída por sua obediência ao comando dos que controlam a informação e ditam o que ela pode ou não fazer. Em vez de a jovem estar preparada para lidar com uma gravidez indesejada, com o assédio ou com uma doença sexualmente transmissível, o fanatismo prefere negar a existência da sexualidade e fazer desta negação uma ineficiente virtude.

A marca central do fanatismo é o esforço permanente em substituir a esfera pública — regida por leis e que contemplam não só a vontade imediata da maioria, mas o direito das minorias — pelas soluções particulares, privadas. Isso não se aplica apenas aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, mas também à segurança pública (onde o cidadão substitui o poder público como protagonista de sua própria defesa), à educação (domiciliar, de preferência) e, no limite, às regras que regem a convivência das pessoas nos territórios onde vivem. O resultado é uma exacerbação de poderes locais exercidos fora da ambição universalista contida na própria ideia de lei e de Constituição.

Em última análise, o que está em jogo na negação do acesso universal a direitos sexuais e reprodutivos resume-se a uma palavra: poder. Trata-se, ao negar o acesso aos meios que permitem à jovem e à mulher adulta os meios de planejar sua vida sexual e reprodutiva, de deixar claro que há instâncias privadas que dominam sua existência e lhe dizem (a partir de uma lógica sempre particularista e local, embutida, muitas vezes, em argumentação de autoridade religiosa) como ela deve se comportar.

Mas além de exprimir a inspiração antidemocrática — ou seja, avessa às mais importantes conquistas civilizatórias contemporâneas, a começar pelos Direitos Humanos — do atual governo brasileiro, o Consenso de Genebra é um obstáculo aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e uma ameaça à prosperidade coletiva. Isso tem a ver com a demografia.

É verdade que, globalmente, o mundo reduziu muito sua taxa de fecundidade. Mas esta conquista está longe de ser homogênea. Nos países da África ao Sul do Sahara, por exemplo, a previsão é de um crescimento demográfico importante. Os dois ou três bilhões de habitantes, além dos quase oito bilhões atuais, que povoarão o Planeta em 2100, virão quase todos eles dos países mais pobres do mundo.

Mas este crescimento populacional poderia ser muito menor se as pessoas tivessem acesso aos meios de planejar sua vida sexual e reprodutiva. E este planejamento depende, entre outros fatores, do acesso a serviços públicos de saúde que garantam meios seguros de contracepção. Não é a ignorância a necessidade ou a falta de informação que, nos dias de hoje, explica a existência de famílias tão numerosas nos locais mais pobres do planeta. É a falta de acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva.

O importante e respeitado relatório do Instituto Guttmacher mostra que, em 2019, nada menos que 218 milhões de mulheres em idade reprodutiva (15 a 49 anos) dos países de renda baixa e média, não tinham acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva. Metade das gravidezes destes países (onde está a esmagadora maioria dos nascimentos) foi indesejada. Só entre as adolescentes dos países de renda baixa e média, são 21 milhões de gravidezes ao ano, metade das quais indesejadas. O acesso das adolescentes a meios de contracepção é muito menor que o das mulheres adultas.

Direitos sexuais e reprodutivos são, hoje, um componente essencial da dignidade humana. Ao mesmo tempo, seu exercício é um dos vetores importantes para a eliminação da pobreza e a redução das desigualdades. Substituir este direito por regras particulares e privadas de comportamento, sem qualquer apoio em ciência e em técnicas terapêuticas consagradas não é apenas um erro: é um projeto de exercício de poder, que passa pela destruição da democracia, dos Direitos Humanos, dos serviços públicos e da informação de qualidade. É o caminho escolhido pelos fanáticos que ocupam hoje o Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL