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Trombadas

Os encaixes de Vanderlei

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

27/10/2022 04h00

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Rapaz, eu não sei se posso prosear cocê agora não. Meu dia é muito encaixado. Que nem carregar e descarregar esse caminhão aqui. Tudo tem lugar preciso, senão fica mercadoria pra fora. E eu já tô é oiando o céu e fazendo as minhas conta. Trabalhar na rua pede que a gente oie mais pro céu do que pra terra. Pode oiá ocê mesmo. Tá vendo? Esse céu daí indica chuva. Quer dizer: o risco de meu dia desencaixar e faltar hora pro que eu tenho que fazer é grande. Mas o segredo de caber é pôr uma coisa de cada vez. Não dianta querer trazer a primeira pra última, porque no final não encaixou e ocê gastou tempo à toda. Paciência, a prova de fogo do homem é a paciência. Ocê vê: por natureza nós somo ansioso, queremo chegar em casa com fome e ver o arroz cozido sem ter que acender o fogo. Não é assim não. As coisa tem seu lugar: a cebola, o alho, o arroz, a água e por fins a paciência. Toda vida eu tive contra o tempo, o do céu e do relógio. Por isso a lona fica aí, esticadinha: choveu, ligeiro eu cubro tudo.

Bahia. Nasci lá no ano de 1975, mas saí menino e portanto me criei na cidade de Pescador, Minas Gerais, na fazenda de leite. Não sei se ocê tá a par de como funciona uma fazenda de leite, mas ali o serviço tem horário bem ajeitado. Quando o galo cantava na primeira vez, três da manhã, eu já tava de ouvido atento. Dava quatro eu levantava e ia pro curral mais meu pai. Se as vaca não estivessem, tinha que ir buscar no pasto. Aí elas podia tá com bezerro, ocê tem que tirar o bezerro dela e aí lascou-se. O horário correndo. Como em Minas tinha muito tirador de leite, o caminhão passava pra recolher os latão e não aguardava. Sem o leite lá no horário do caminhão, não tinha choro que curasse a perda. Muito duro. Fazenda é assim, só tem um dia da semana. Todo dia lá é segunda-feira. De pequeno eu gostava demais. Até sonhava, ansioso pra ir no mangueiro disputar os bezerro com as vaca. Mas quando inteirei 18 resolvi vir pra São Paulo.

Eu via meus amigos, moleque novo de 15, 16 anos, ainda com os primeiro fio de pelo nascendo na cara, já com três, quatro filho, eu digo: quero isso pra mim não. Porque se for desse modo, a minha vida, a dos meus filho, dos meus neto, dos meus bisneto não vai desviar desse sofrimento continuado. E eu era sonhador. Sonhava de ter um carro, uma esposa, uma família e uma casa. Só que cada qual no seu tempo. O sonho eu tenho pra mim que é por degrau: você atinge um, depois supera outro, aí mais outro e assim vai vivendo a vida. Não presta acumular sonho achando que uma hora realiza tudo junto. Mas como eu ia dizendo procê, um tio meu já tava estabelecido aqui, na cidade de Osasco a bem dizer, dono de um Monza novo, e então eu toquei vir trabalhar no depósito de material dele. Meu pai abençoou: "Se ocê já se acha homem verdadeiro, pode ir".

Pelo que ouvia o povo falar, eu pensava que São Paulo era o paraíso. Né não. Até porque o paraíso não tá na Terra, nem o inferno também não tá. Me lembro com se fosse hoje: dia 21 de fevereiro de 1994, sete hora da manhã eu desci na rodoviária do Tietê. E assim que desci, eu juro procê, se tivesse algum dinheiro no bolso eu subia no mesmo ônibus de volta pra Minas. Rapaz, o que era aquilo? Uma fumaça que na mesma hora travou a garganta. Aquele barulho. Como é que se ouve os passsarinho aqui? E esse tanto de prédio na frente do sol? Eu vou-me embora, era o meu querer. Mas de que jeito? De roupa eu só tinha a que tava no corpo e mais outra muda na bolsa. Nenhum centavo nem prum cafezinho. Pensei comigo: quer saber du'a coisa?, todo mundo é igual, todo mundo tem o mesmo fôlego de vida no nariz dado por Deus, portanto se esse monte de gente vive aqui, eu posso também. Além do mais, o planeta dá um giro todo dia. Hoje eu tô embaixo, amanhã eu posso tá em cima. E problema todo mundo tem, é ou não é? O problema ocê supera ele. No decorrer dos tempo, vamo supor assim, eu aprendi que a solução do problema tá sempre dentro dele mesmo. Ô. Tenho várias experiência, se eu for contar procê nós vai ficar o dia inteiro e não chega na metade. Tá bão, uma só eu conto. Deixa eu descer do caminhão que nós senta ali na sombra.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu tava em Maringá, na casa da minha sogra, e me interessei em vender essas cadeira de bambu. Toquei até Umuarama, já perto do Mato Grosso do Sul, pra encomendar com o fabricante:

-- O senhor me faz 25 jogo de cadeira de bambu?
-- Faço. É tanto.
-- Pode fazer então.
-- Mas no dia que eu te ligar e falar "tá pronto" ocê tem que buscar, porque no meu barracão não cabe estoque.
-- Tá bão.

E assim ficamo apalavrado. Combinei com meu irmão de voltar lá comigo, porque na época a minha carteira não dava licença de guiar caminhão, só automóvel. Aí o homi liga: tua carga de cadeira tá pronta. Foi aí que começou a enroscar. Meu irmão não tava disponível. Como eu ia fazer? Vou desistir da encomenda, é o jeito. Mas para, Vanderlei, homi voltar atrás na palavra é a pior coisa que tem, o pai ensinou. Portanto calculei o custo envolvendo as cadeira, o pedágio, o combustível e o lanche, botei o dinheiro preciso no quebra-sol e seja o que Deus quiser. Vou sem carteira conforme mesmo. No primeiro pedágio da Castelo Branco, ai, Jesus, isso aqui vai dar errado. Como eu só viajava de carro, calculei pedágio pra eixo simples. E meu caminhão era eixo duplo, pagava dobrado. Paguei, cruzei o pedágio e pensei comigo: lá no final vai faltar dinheiro. E foi o que aconteceu.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Até Umuarama deu. Paguei o homi das cadeira certinho, carreguei o caminhão e comecei a voltar. Quando cheguei no primeiro posto de combustível pra reabastecer, o frentista pediu pra oiá a frente. Tá baixo o óleo, moço, precisa completar. Meu Deus! Mais uma despesa que não tava no meu orçamento. Comprei o tambor de óleo, rodei, rodei, rodei e o dinheiro veio finalizar em Ourinhos. Com as última moedinha eu comi um pão com mortadela. Era noite, eu tava cansado e imaginei assim: vou dormir aqui dentro do caminhão, amanhã cedo eu ligo pra Laudicéia, a Laudicéia é a minha esposa, aquela ali, me ajuda nas venda mais meu filho Tiago e o pequeno, que só mama e corre por aí, a Laudicéia me deposita na conta, eu entro numa cidade pra tirar no caixa eletrônico e vou-me embora. Porque a gente não pode cair em desespero que não dianta nada.

Portanto eu já tava quase pegando no sono e escutei uma voz:

— Levanta. Vai embora.

Eu levantei, oiei lá fora, nada. Não é possível uma coisa dessa. Quem falou comigo? Bão, me deitei e de novo e:

— Levanta. Vai embora.

Só pode ser coisa da minha cabeça. Voltei oiá lá fora, nada. E a voz outra vez:

— Levanta e vai embora. Ocê vai dormir na tua cama.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Dei a partida e vim embora, o que eu ia fazer? Se não tinha ninguém por perto fazendo brincadeira comigo, eu não tava doido nem sonhando, então só podia ser Deus me falando. Eu obedeci. Só liguei o motor e parti. Na altura de Itapetininga, naquela escuridão da estrada, somente eu, meu caminhão, minhas cadeira e as estrela no céu, tinha um guarda com farolete no meio da pista. Diacho, tava só me esperando.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

— Documento e habilitação.

Entreguei pra ele, sabendo que a carteira não era compatível.

-- Seu Vanderlei, o senhor tá de brincadeira, né?
-- Não, seu guarda, é o que tem pra hoje.
-- Pode descer. Vamo oiá essa sua carga.

E aí fui contando a minha história pra ele, que tinha dado palavra e não podia voltar atrás, que eu sabia que tava errado, mas que eu era trabalhador e queria só cumprir com o meu serviço.

— Eu também, seu Vanderlei, eu também. Vou ser sincero com o senhor: a sua viagem acaba aqui. Vou te multar e apreender a carga.

Não é possível. Deus me falou que eu ia dormir na minha cama hoje. Não pode ser. O guarda foi lá pra dentro na guarita e deu dez minuto ele voltou:

-- Seu Vanderlei, vamo fazer um negócio melhor pra nóis dois?
-- Mas que negócio melhor?
-- Se o senhor descer um jogo de cadeira desse pra mim, eu te libero pra ir.
-- Seu guarda, quem tá perdido não tem muita escolha não. Eu aceito.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Fui lá, soltei as corda, um trabalho que só Jesus, desci o jogo de cadeira pra ele. Ele devolveu os documento, pegou na minha mão e falou:

-- Daqui pra frente ocê nunca me viu e eu nunca te vi. Tamo conversado?
-- Seu guarda, o senhor não tá mexendo com moleque. Tenho cabelo branco na cabeça, sei o que tô fazendo. Tamo mais que conversado. O senhor pode se sentar aí nas suas cadeira que eu vou embora em paz.

Mas aí veja só o que aconteceu. Eu amarrei a carga tudo outra vez e quando tava pra sair o guarda retorna. Ai, meu Deus, ele não ficou contente com as cadeira e vai querer um complemento em dinheiro. Deve ser isso. E eu sem um tostão mais.

-- Seu Vanderlei, eu não quero as suas cadeira.
-- Como assim, seu guarda? Nóis não tava apalavrado? Agora o senhor vai voltar atrás?

— De graça eu não quero não. Fiquei pensando na sua história, me senti emocionado e eu vou te pagar esse trem. O senhor ponha o preço de custo mais o frete até aqui, que eu lhe pago.

Diz que homem não chora, pois nessa hora eu chorei. Rapaz! Era o dinheiro que me faltava pra concluir a viagem. A solução dentro do próprio problema. Eu já tinha dado as cadeira de graça, se ele me desse dez real pro pedágio tava de bom tamanho. Mas ele botou 350 conto na minha mão. Completei o combustível, paguei os pedágio que faltava e ainda cheguei em casa com mais da metade no bolso. Portanto eu que tinha planejado a quantia pra ir e voltar, me embananei nas conta, fiquei sem nada e aí me acontece um negócio desse. Como é que pode? Acho que Deus tocou o guarda, porque não tem cabimento um negócio desse. A pessoa voltar atrás de roubar? Nunca vi isso. Nem nunca mais voltei a ver. Só sei que entrei em casa passando o dinheiro pras mão da Laudicéia, ela não entendeu nada, e fui tomar um banho, que eu ia mesmo dormir na minha cama aquela noite. Mas óia a chuva aí, não falei? A prosa tá feita e o seu dia tá encaixado. Agora ocê me ajuda aqui com a lona, por gentileza.

Vanderlei José da Rosa, 47 anos

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar —- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.