BRASIL NO DRIVE-IN

Nos 40 anos de 'Bye Bye Brasil', Cacá Diegues fala sobre um país ainda dividido entre modernidade e atraso

Matheus Pichonelli Colaboração para o TAB

Cacá Diegues recebeu pelo menos 600 mensagens no dia em que completou 80 anos, 19 de maio. "Pelo menos" porque parou de contar. "Fiquei feliz em saber que as pessoas não me esqueceram", diz o cineasta por telefone, do Rio, de onde só saiu duas vezes desde março.

Entre as pessoas do grupo de risco, ele se define como a mais paciente e obediente do mundo. Lava as mãos com frequência, usa máscara e mantém o distanciamento social enquanto se dedica a dois projetos, um novo livro e o roteiro do longa-metragem "Deus ainda é brasileiro", que evita chamar de continuação de seu "Deus é brasileiro", lançado quase 20 anos atrás.

2020 tem sido um ano de efemérides para o diretor. "Bye Bye Brasil", filme que ele dedicou ao povo brasileiro do século 21, foi lançado há 40 anos. Só não imaginava que, neste novo século, o país percorrido pela Caravana Rolidei, trupe comandada por José Wilker em companhia de Betty Faria, Fábio Júnior, Zaira Zambelli e Jofre Soares, permanecesse um país arcaico, fundado no genocídio indígena, na exploração sexual e na confusão das ideias entre progresso e devastação. O filme foi exibido em 3 e 5 de setembro no Belas Artes Drive In, em São Paulo, dentro do Memorial da América Latina.

Entre um projeto e outro, o detentor da cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras aproveita a quarentena para ler e assistir ao que estiver passando na TV de 75 polegadas que instalou em casa. Conta ter achado chato "O Irlandês", de Martin Scorsese, mas que no período reviu Alfred Hitchcock, assistiu finalmente a "Breaking Bad" (adorou, aliás) e virou fã do youtuber Felipe Neto. Os elogios mais rasgados ficam para "Pacarrete", filme de estreia do cearense Allan Deberton, que Cacá Diegues define como "maravilhoso". "É sobre um personagem que só pode ter existido no Brasil e no interior do Ceará."

Confira a entrevista que ele concedeu ao TAB.

TAB: Como foi comemorar 80 anos no meio de uma pandemia?
Cacá Diegues
: Recebi uma mensagem atrás da outra. Zap, e-mail, telefone, tudo. Fiquei feliz em saber que as pessoas não me esqueceram, que estou vivo.

TAB: Nem visita você recebe?
CD:
Não! Estamos dentro de casa só eu e minha mulher. Falo muito por telefone. Quando sinto saudade das pessoas, eu ligo.

TAB: Não aderiu às videochamadas?
CD:
Não gosto muito, mas faço. Não me recuso. Fiz uma live de que gostei muito, sobre os 40 anos de "Bye Bye Brasil". O Canal Brasil fez uma live enorme comigo, com os produtores, os atores do filme. E foi muito bom.

TAB: Qual foi a última vez que você foi ao cinema?
CD
: Foi este ano, mas não lembro o filme. Vi tanto filme nesta quarentena que posso ter misturado tudo. Não sei mais o que vi na televisão e o que vi no cinema. Estou com uma televisão grande, de 75 polegadas. Tenho um cineminha aqui e assisto o que tiver. Onde estiver passando filme eu vejo.

TAB: E os filmes e séries têm mais te surpreendido ou decepcionado?
CD
: Depende. Fiquei encantado em rever "Intriga Internacional", do Hitchcock. Tem tudo a ver com o que está acontecendo hoje. Cada vez que você revê um bom filme, você vê uma nova história, volta no tempo e também no espaço. Primeiro você assiste no Rio de Janeiro, depois não sei onde, e isso muda muito o caráter do filme. O filme bom se renova.

TAB: Você revê seus filmes?
CD
: Não revejo muito, não. O filme acaba depois do lançamento. Prefiro não rever, senão eu fico vítima do filme para o resto da vida. Só assisto quando sou obrigado.

TAB: Nem "Bye Bye Brasil"?
CD: Revi agora. Tinha que ver por causa dos 40 anos e a exibição do Canal Brasil. Mas em geral não vejo, não. Tenho até os DVDs dos filmes aqui. Precisando eu vejo, mas não tenho vontade de ver.

TAB: "Bye Bye Brasil" passou em drive-in, em São Paulo. Você imaginava que seria assim quando dedicou o filme ao "povo brasileiro do século 21"? Que as pessoas não poderiam se aglomerar em uma sala de cinema?
CD: Nunca pensei. Mas isso também só voltou por causa da pandemia. Como as pessoas não podem se aglomerar, vão ver no drive-in, trancadas dentro do carro. O que estou muito feliz de ver é o streaming. Não concordo com esse chororô do Martin Scorsese, sabe? Acho que o streaming é uma etapa superior da exibição de um filme.

TAB: O filme mostra um Brasil em transformação e faz referência ao genocídio indígena, ao progresso que abre estradas na Amazônia e esfola o meio ambiente, à exploração sexual. Não te surpreende a manutenção das bases desse país?
CD: "Bye Bye Brasil" teve uma recepção muito estranha. Foi meu filme mais consumido fora do Brasil. Na Europa, sobretudo na França e na Itália, o filme foi recebido como um filme triste, sobre o fim de uma cultura e a substituição por outra. Nos EUA e na América Latina, foi visto como um filme de amor a um país que estava nascendo. O filme é as duas coisas. "Bye Bye Brasil" é resultado da minha observação sobre o Brasil. Sempre viajei muito. Agora, ultimamente, não tenho viajado. Outro dia concluí que só não conheço três estados do Brasil. Os outros eu conheço, mesmo de passagem. "Trem para as estrelas" (de 1987) é um filme muito parecido com "Bye Bye Brasil", sobre a transformação de uma cultura, urbana, da cidade. Também foi muito importante. Não gosto de fazer filme nem com nostalgia nem com mensagem para o futuro. Eu gosto do presente. A única nostalgia que tenho do passado é a saudade do meu corpo jovem, que era muito melhor.

TAB: Mas não te surpreende que o Brasil de 2020 destrua o meio ambiente e estraçalhe indígenas pelo caminho?
CD
: Ah, sim. Surpreende muito que o Brasil continue igual. Eu mudo, mas o Brasil não muda. Não sei o que acontece com o Brasil. Não tem aquele livro do Darcy Ribeiro, "O Povo Brasileiro", em que ele diz que o Brasil é cruel e generoso ao mesmo tempo? O povo brasileiro é muito cruel, às vezes, e faz escolhas que você não entende direito. O Brasil se tornou muito estranho ultimamente. Tem hora que a gente está entendendo tudo e, de repente, não está.

TAB: Como tem visto o sucateamento do patrimônio cultural nacional? E as trocas do Ministério da Cultura?
CD
: Vou dizer uma coisa: tenho mais de 60 anos de cinema. Fiz meu primeiro curta com 17 anos. Nunca vi um momento tão positivo para o cinema brasileiro. Há diversidade regional, geracional, política, artística, o que você quiser. Ao mesmo tempo, a organização econômica do cinema é um desastre. Ao longo da minha vida, vi muito governante que não se interessava por cinema -- ou porque não gostava ou porque achava que não era importante. A gente tinha que ir até lá, provocar o cara para ver se ele se interessava, e sempre conseguimos isso. Esse governo é contra o cinema brasileiro. Não é que ele não se interessa. Ele é contra. Então não sei o que fazer. A Lei do Audiovisual, que foi feita na época do Itamar Franco (1993), precisava ser renovada. E foi renovada, mas o governo eliminou a coisa mais importante desses 30 anos, que era o financiamento com recursos do Imposto de Renda. Jair Bolsonaro eliminou isso. A gente teve que lutar pra burro pra recuperar. Outro dia vi "Pacarrete". É um filme extraordinário, lindo, maravilhoso, e é o primeiro longa-metragem de um jovem do interior do Ceará, Allan Deberton. É onde o filme nacional acerta: quando a gente revela personagens e situações sobre as quais ninguém mais pode falar, senão nós mesmos. Temos que criar alguma coisa que ajude as pessoas a viver, para que elas descubram onde estão vivendo, qual é o país delas, o povo, e como elas querem ser. Essa missão do cinema brasileiro deu certo.

TAB: Que papel vai ter o cinema nesta reconstrução?
CD
: Já tentaram matar o cinema brasileiro várias vezes, e ele não morre. É uma espécie de vocação. Tenho uma tese meio estranha sobre isso. O Brasil é um dos poucos países do mundo que pode ter um cinema diverso, porque é um país grande. O que é o cinema brasileiro? É um filme feito no igarapé do Amazonas ou nas praias da Bahia? Nas cidades históricas de Minas ou nas favelas cariocas? Isso é o Brasil. Não vai faltar nunca o pretexto para se fazer alguma coisa. Sempre vai ter este tipo de incentivo que a realidade te dá. Poucos países do mundo têm isso. Os EUA têm. A Rússia tem isso. A China, a Índia. E o Brasil, um país que precisa da imagem para se revelar. Mesmo acabando a pandemia, ainda vai haver problemas no Brasil para filmar. Tem que ter paciência.

TAB: Um vídeo seu foi um dos primeiros hits do YouTube, a propaganda das Raspadinhas do Rio, e o Costinha fez uma versão particular. Como foi ter viralizado tantos anos depois?
CD: (Risos) Não sei quem pegou essa cópia. Eu não tinha cópia disso. Foi uma brincadeira que a gente fez. O Costinha inventou e a gente fez essa brincadeira. Costinha era genial, uma grande figura, um grande comediante. Infelizmente descobri tarde o Costinha, mas descobri.

TAB: Em uma entrevista ao "Roda Viva", em 1987, você disse se considerar um militante, e não um profissional do cinema. Ainda se vê assim?
CD: Isso eu mantenho. Não sou um profissional. Sou um militante do cinema. É uma característica que mantenho desde a juventude.

TAB: Nessa mesma entrevista te perguntaram sobre "patrulha ideológica", uma expressão que você criou para falar das críticas recebidas por "Xica da Silva" (1976). Você se negava a comparar essas críticas à censura. E agora?
CD: Não é a mesma coisa. É um outro universo. Tem que ter uma certa paciência e aceitar. Aceitar não é concordar. É saber que isso acontece e tem que encarar. Fake news é outra coisa, tenho horror. Mas a liberdade que a pessoa tem na rede social, mesmo que seja para dizer besteira, não tem importância. Deixa dizer besteira! Um dia melhora. Um dia as pessoas vão se conscientizar de que elas precisam se preparar melhor para falar nas redes sociais, na televisão etc. A patrulha ideológica evita o pensamento, evita a novidade, evita o que é livre e o que não for contrariado. Isso é que é horrível. Temos que lutar contra isso sempre, mas sem proibir.

TAB: Quando fazia propaganda para shopping center, a única orientação dos contratantes era não mostrar o preço nem pessoas negras. Não é bom que uma situação assim tenha se tornado impensável hoje?
CD: A situação melhorou muito, mas não acabou. A gente ainda reproduz certas situações de escravidão. Tem quem acha que branco é mais inteligente e superior aos negros. Antigamente você tinha só o Grande Otelo, grande ator negro. Hoje há tantos outros. Mas não se resolveu, porque ainda há desinteresse pelo que o negro está dizendo.

TAB: Em "Trem para as estrelas", o delegado interpretado por Milton Gonçalves diz que bom mesmo era antigamente, quando havia autoridade. E previa: 'daqui a pouco estão chamando a gente de novo para dar porrada nos comunistas'. Era uma profecia?
CD: Uma cena assim não parece ter muito propósito na hora, e na verdade ela é a revelação de algo que alguém disse antes. Faço isso porque gosto do Brasil. Minha vida foi toda envolvida nisso. Meu pai era antropólogo, viajava muito com ele. Quando era criança, com cinco, seis anos de idade, tinha em Maceió uma babá negra, muito magra, e ela colocava a gente para dormir e me contava sempre a história do Zumbi. Ela dizia que o Zumbi não tinha morrido. Dizia que ninguém conseguia pegar Zumbi, porque ele sabia voar. Fiquei com isso na cabeça. Minha formação é de tentar entender o Brasil, sem nenhum preconceito. E sem nenhuma falsa ideia do que seja morar num paraíso.

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