CASO ENTERRADO

Investigação de vala clandestina em SP intercepta áudios sobre tribunal do PCC, mas tem sequência de erros

Amanda Rossi, Flávio Costa e José Dacau Do UOL, em São Paulo teste

Um perigoso matador do PCC (Primeiro Comando da Capital), responsável por mais de 50 mortes. Foi assim que o delegado Carlos Alberto da Cunha, da Polícia Civil de São Paulo, anunciou a prisão de um suspeito e a descoberta de uma vala clandestina no Parque Savoy City, zona leste, em abril de 2020. Mas nenhuma escavação foi feita em busca de corpos. Também não foi garantida a proteção do local.

Apenas 54 dias depois, a polícia voltou ao endereço para procurar por vítimas. Em vez dos 50 corpos, encontrou três, nenhum identificado até agora. "Repercutiu, né? Aí os caras [criminosos] tiraram [os corpos]", disse uma das pessoas que participaram das operações. A localização da vala clandestina havia sido exibida no dia da prisão do suspeito, tanto no canal no YouTube do delegado Da Cunha, com 3,7 milhões de inscritos, como em emissoras de TV.

"Tá passando ele na televisão agora, ao vivo. Mano, você sabe o que colocaram? 'Jagunço mostra cemitério clandestino com vítimas'. Vão f* com ele", disse a mulher de Wislan Ferreira, o suspeito preso por Da Cunha. O telefone dela estava grampeado pela polícia. "Vão falar que ele caguetou [delatou para a polícia]", respondeu a interlocutora da conversa.

"Jagunço do Savoy" é como Da Cunha apresentou Ferreira diante das câmeras. "Ele é o chefe do 'tribunal do crime' da zona leste", disse o delegado, fazendo referência aos julgamentos feitos pelo PCC. Mas outra investigação da Polícia Civil apontou que Ferreira, na verdade, não era o "Jagunço do Savoy" -- que continua sendo procurado.

O caso ilustra dificuldades e falhas na apuração de casos de valas clandestinas. A equipe do delegado Da Cunha fez interceptações telefônicas que apontavam para a realização de julgamentos por membros do PCC. Mas o trabalho policial resvalou em uma sequência de erros, que podem tanto ter prejudicado o encontro de corpos como podem anular todo o caso na Justiça.

"Ele [Da Cunha] divulgou detalhes desse trabalho policial que absolutamente não correspondem à verdade, com o provável objetivo de explorar a credulidade de seus seguidores, provocando milhões de acessos em seu canal", disse o delegado-geral de polícia de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, em depoimento no Ministério Público do estado, em agosto de 2021. No canal de Da Cunha no YouTube, os vídeos da prisão de Ferreira tiveram 29 milhões de visualizações.

Procurado pelo UOL, Da Cunha respondeu, por WhatsApp: "Não tenho nada a falar sobre o caso. Meu trabalho está no inquérito". Em setembro de 2021, o delegado foi indiciado pela Corregedoria da Polícia Civil por suspeita de peculato --quando um funcionário público obtém vantagens pessoais em virtude do cargo. Hoje, ocupa funções administrativas, sem acesso a armas, distintivo e algemas. Ainda mantém o canal no YouTube ativo.

DESAPARECIDOS DEPOIS DA PRISÃO

Ao anunciar a descoberta da vala clandestina no Parque Savoy City, Da Cunha falou que, naquele mesmo dia, a polícia faria escavações na área. Porém, logo em seguida, voltou atrás. "Devido ao covid, a gente não tem coveiro disponível, não tem nenhuma estrutura funerária para desenterrar agora 50 cadáveres que a gente pode achar aqui", disse em entrevista para a RedeTV!.

Mas o Serviço Funerário de São Paulo disse ao UOL que "não localizou nenhum pedido de solicitação de apoio encaminhado pela 8ª Delegacia Seccional, em São Mateus [na época chefiada por Da Cunha], no período informado, quanto à descoberta de um cemitério clandestino". Também não houve acionamento dos carros de cadáver do IML (Instituto Médico Legal) de São Paulo.

Passados quase dois meses, ao retornar ao Parque Savoy City para, de fato, iniciar a busca por vítimas, a polícia recebeu informações sobre uma segunda vala clandestina, a cerca de um quilômetro de distância da primeira. Nesse caso, a escavação foi iniciada imediatamente, encontrando mais três corpos.

"Depois da prisão do Jagunço, como eles [membros do PCC] desconfiaram que a gente sabia que o cemitério era no Savoy, eles mudaram", disse Da Cunha, em novo vídeo para seu canal no YouTube -- sem mencionar que fora ele próprio quem havia revelado a localização da vala clandestina no Savoy.

Todas as três vítimas encontradas na segunda vala clandestina foram identificadas. São pessoas que desapareceram e foram mortas entre maio e junho de 2020. Portanto, depois da prisão de Ferreira -- detido em 30 de abril, ele está desde 6 de maio em Presidente Venceslau, uma penitenciária de segurança máxima onde já ficaram alguns dos líderes do PCC.

Ainda assim, a polícia atribuiu as três mortes a Ferreira. "Não é obra do acaso um indivíduo ser encontrado morto, com os mesmos sinais de violência que todos os outros, nesta mesma região apontada por Jagunço como a área utilizada pela organização criminosa para enterrar os condenados", escreveu o delegado Denis Ramos Camargo, que substituiu Da Cunha no caso ainda em 2020.

Três processos foram abertos na Justiça, um para cada vítima identificada. "O que levou o senhor a crer que o Wislan [Ferreira] coordenava o 'tribunal do crime' mesmo estando preso em Venceslau?", questionou o juiz de um dos casos.

"Eu não me recordo muito bem, infelizmente, das datas. A única coisa que me levou a crer e encerrar esse inquérito, até mesmo pedindo a prisão do Wislan, foi com base numa pessoa que era membro da organização [PCC], de prenome Ricardo, que ele falou que realmente o Wislan coordenava", respondeu o delegado Camargo.

Em seguida, a testemunha Ricardo foi ouvida. "Afinal de contas, qual é o vínculo do Wislan 'Jagunço' com o 'tribunal do crime'?", quis saber o juiz. O homem respondeu: "O vínculo eu não posso afirmar. Isso daí eram comentários que tinha. Tudo pela boca dos outros, entendeu?".

Neste mesmo processo, o Ministério Público questionou "quais as provas" de que Ferreira havia ordenado o assassinato de dentro da prisão e por que motivo. Um investigador de polícia hesitou: "A gente mesmo só localizou os corpos e o IML identificou, né".

"O que eu quero saber é o seguinte: o senhor tem uma fonte de informação segura ou é suposição da sua parte?", continuou o promotor do caso. "Não, não, não, não... referente a isso eu prefiro não... não falar qual foi o motivo da morte dele", disse o investigador.

Os delegados Da Cunha e Camargo, bem como os investigadores do caso, não explicaram para o Judiciário qual a origem do número inicial de 50 corpos. Também não disseram se a polícia continuava buscando por novos locais de desova no Parque Savoy City. Somente em 2019, 28 pessoas foram dadas como desaparecidas na região, sem serem encontradas até agora.

INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS

A prisão de Ferreira foi possível a partir de informações obtidas por interceptação telefônica. Durante a investigação, dezenas de pessoas tiveram seus sigilos quebrados.

Segundo a polícia, um dos diálogos interceptados aborda um homicídio cometido após julgamento do PCC. "O infeliz já viajou, viu?", disse Ferreira. "Sem passagem de ida nem vinda. As 'ideia' lá comprovou mesmo, né? Menos mal, isso serve de lição pra muitos ali", respondeu o interlocutor.

Já outras conversas sugerem ameaças de violência física e intimidação. Em uma delas, Ferreira discute o caso de uma pessoa que deu uma marretada em outra. "Moer ele no pau é o mínimo, no mínimo quebrar ele todinho", disse um interlocutor de Ferreira. "A vida dele não cabe, não, mano, não matou ninguém", respondeu Ferreira, indicando que a punição nesse caso não seria pena de morte.

"Tá em choque, correu, nós entende, por causa da sua fama", seguiu a segunda pessoa, indicando que o homem que seria julgado fugiu com medo de Ferreira. "Tá achando o quê? Que o bagulho é bagunçado? A favela é do comando", continuou Ferreira.

Já no dia da prisão de Ferreira, a equipe de Da Cunha começou a questionar o suspeito sobre o funcionamento do "tribunal do crime" -- sempre sob o registro das câmeras do canal do delegado no YouTube.

Ferreira explicou que a facção julga delitos sexuais cometidos nos bairros controlados pelo PCC, casos de envolvimento afetivo com mulheres comprometidas com pessoas do crime, dívidas com o tráfico de drogas e traição entre integrantes do grupo.

Ainda de acordo com o relato de Ferreira, suspeito, acusadores e testemunhas são ouvidos nos julgamentos do PCC, até que se chegue a um veredito. "A gente arremessa as 'ideia'. Querendo ou não é vida, por mais que o safado é estuprador, nós apura. Até então, nós tem que apurar, porque 99 não é 100. Porque, se nós tirar uma vida, e amanhã ou depois as ideia voltar, nós paga com a nossa."

Mas o relato de Ferreira diante das câmeras de Da Cunha não tem valor de prova nem sequer foi considerado pela Justiça. "Por óbvio, tais relatos dados de maneira informal não constituem confissão do indiciado, pois naquele momento não se perpetuava seu interrogatório ou formal indiciamento", escreveu o delegado que substituiu Da Cunha no caso.

NÃO ERA O MESMO JAGUNÇO

O interesse de Da Cunha em um criminoso de codinome "Jagunço do Savoy" surgiu depois da descoberta, em 2020, de um recado com um suposto plano do PCC para matar o delegado-geral de polícia de São Paulo. Um dos responsáveis pelo crime seria "Jagunço do Savoy".

Da Cunha sempre apresentou Wislan Ferreira como o "Jagunço do Savoy". "O nome dele estava numa carta que foi redigida a mando do Marcola [Marcos Camacho, líder do PCC, preso desde 1999] para, em uma represália, matar o delegado-geral. O nível dele [Jagunço] é cúpula do PCC. O Marcola não ia confiar uma tarefa dessa para alguém que não fosse da cúpula", falou Da Cunha em um dos vídeos no YouTube sobre a prisão de Ferreira.

Nessa altura, a equipe de Da Cunha já tinha interceptado as comunicações de Ferreira. Mas não havia nada nos diálogos que citasse o delegado-geral, muito menos um suposto plano para matá-lo, de acordo com a documentação compartilhada com o Judiciário.

Ao mesmo tempo, outro braço da Polícia Civil de São Paulo já estava investigando a ameaça à vida do delegado-geral. "A equipe de policiais conseguiu identificar uma célula criminosa denominada 'Bonde dos Quatorze', que tinha como missão (...) realizar ações em nome do 'tribunal do crime' para assassinar policiais civis e autoridades", informou um investigador do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) para o Ministério Público.

"A investigação foi em grande parte concluída, com a prisão de mais de 13 criminosos (...). Ainda estão buscando mais elementos a fim de efetuar a prisão do tal 'Jagunço do Savoy', já identificado (...). Ocorre que a pessoa com a alcunha 'jagunço' que foi presa pelo Dr. Carlos Alberto da Cunha não era a mesma pessoa", continuou o investigador.

Já o depoimento do próprio delegado-geral para o Ministério Público foi mais duro: "Dr. Carlos Alberto da Cunha somente tornou-se uma celebridade no YouTube veiculando o vídeo noticiando que havia prendido o tal de Jagunço encarregado de matar o depoente (...). Trata-se de uma mentira, que expõe toda a instituição da Polícia Civil e tumultua os trabalhos da instituição policial".

A investigação sobre as seis vítimas encontradas nas duas valas clandestinas na região do Savoy não apontou nenhum outro suspeito para os crimes de homicídio e ocultação de cadáver. Se a Justiça considerar que Ferreira é inocente, os processos podem ser arquivados, deixando sem respostas as famílias das vítimas encontradas.

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