Desova na água

Estado do Rio teve mais de 350 corpos achados em lagoas, rios e praias desde 2016

Saulo Pereira Guimarães Do UOL, no Rio teste

Gracielle de Castro Silva perdeu o filho Patrick Silva Gaspar, 15, negro, no dia 8 de fevereiro de 2019. Envolvido com o tráfico, o jovem teria sido morto por bandidos na favela do Fumacê, na zona oeste do Rio.

A mãe conta que foi até o local e pediu aos traficantes que liberassem o corpo de Patrick. Os bandidos se negaram a entregar o cadáver do rapaz, mas indicaram onde a mãe poderia encontrá-lo, de acordo com seu relato.

"Achei um isopor com a cabeça dele em cima e seu corpo picotado dentro, na beira de um rio", afirma Gracielle. "Como era tempo de chuva, tudo foi levado pela água na primeira inundação."

De 2016 a 2021, o estado do Rio registrou 366 "encontros de cadáveres e ossadas" em lagoas, praias e outras áreas alagadas. Entram na conta vítimas de afogamento e pessoas encontradas mortas nestes locais por outros motivos, como assassinato. Reunidos pela Polícia Civil, os números foram fornecidos ao UOL por meio da Lei de Acesso à Informação.

A polícia fluminense classifica como "encontro de cadáver" ou "encontro de ossada" a localização de restos mortais pertencentes a vítimas cuja causa da morte não possa ser explicada de forma imediata. Por essa lógica, um corpo encontrado com marcas de tiros em uma área controlada por um grupo armado é contabilizado como "homicídio doloso" ou outro tipo de morte violenta, e não como "encontro de cadáver".

Segundo especialistas, deixar corpos e ossadas nesses locais é uma estratégia usada por grupos armados para dificultar a descoberta e o esclarecimento de homicídios.

"Um corpo jogado num rio pode ser levado para longe pela correnteza. Já um lago pode ser um local difícil para encontrá-lo devido a questões de iluminação, por exemplo", diz Marcos Paulo Machado, perito da Polícia Civil do Rio. "Os restos mortais podem se desfazer em pedaços que se separam na água, o que também atrapalha a identificação", afirma.

Em geral, as vítimas são aqueles que, de alguma forma, se opõem às regras impostas pelo tráfico ou pela milícia.

"Muitas vezes, as pessoas são punidas por atrapalharem os negócios ou por ameaçar passar informações à polícia. Também acaba sendo feita uma mediação de conflitos entre moradores, criando uma relação clientelista com a comunidade", afirma Bruno Paes Manso, doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo) e integrante do Núcleo de Estudos da Violência.

"No Rio, são 700 comunidades dominadas por diversos grupos criminosos. Cada um é uma espécie de subprefeitura local, que exerce esse papel quase de Estado."

CORPOS EM CASAS, RUAS E PRAIAS

Áreas alagadas responderam por 17% das 2.029 ocorrências de encontro de cadáver no Rio nos últimos cinco anos — ficam atrás de residências (595) e vias públicas (593). Ao todo, foram 144 registros em rios, 138 em praias, 50 no mar, 18 em lagoas e um numa estação de barcas.

Além disso, 15 dos 186 casos de encontro de ossadas no Rio nesse período também se deram em áreas alagadas.

Um mesmo registro de encontro de cadáver ou de ossada pode se referir a mais de uma vítima, como acontece nos casos de valas clandestinas. Nesses casos, um documento chamado Guia de Recolhimento de Cadáver é usado para descrever o estado em que cada uma das vítimas foi encontrada.

De acordo com especialistas, há ainda vários casos que não são descobertos pela polícia.

Um boletim de ocorrência obtido pelo UOL e registrado em 10 de janeiro de 2013 dá conta do desaparecimento de Ronaldo Barbosa de Mesquita, branco, no bairro Km 32, em Nova Iguaçu (RJ). "A declarante ouviu de vizinhos que seu filho Ronaldo teria sido morto e jogado no rio Guandu [que cruza a região metropolitana do Rio]", informa o documento.

De acordo com vizinhos, Mesquita e outro indivíduo teriam sido levados pela PM - não foi possível saber de que batalhão eram os agentes envolvidos na detenção, nem o número de ordem da viatura. A pessoa que registrou o boletim informa ter ido a uma delegacia e ao IML em busca de Mesquita, sem sucesso.

Entre as providências tomadas pela polícia, descritas no documento, estão consultas aos sistemas internos de informação e encaminhamento à 56ª DP (Nova Iguaçu). Não há registros de que Mesquita tenha sido encontrado.

Procurada, a Polícia Civil do Rio não se manifestou sobre o caso.

Já a Polícia Militar informou que "a partir dos dados passados, não foi encontrado procedimento apuratório interno sobre a situação relatada".

Em 22 de novembro de 2021, a descoberta de oito cadáveres por moradores do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, despertou suspeitas sobre a ocultação de cadáveres em áreas alagadas por parte da Polícia Militar. Os corpos foram achados em um mangue, um dia depois de uma incursão do Bope (Batalhão de Operações Especiais) na comunidade.

"Nesse caso, a polícia agiu como um grupo de extermínio, não só por ter matado, mas também por ter deixado os cadáveres no local para intimidar os moradores", diz Fábio Alves Araújo, doutor em sociologia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor do livro "Das 'Técnicas' de Fazer Desaparecer Corpos".

Procurada, a Polícia Militar do Rio afirmou que "o comando da corporação instaurou um Inquérito Policial Militar para apurar todas as circunstâncias da ação e colabora inteiramente com as investigações".

"Os policiais do Bope que atuavam na região também foram informados que, por volta das 15h, uma equipe do Samu foi acionada ao Salgueiro por conta de um indivíduo ferido e criminosos armados obrigaram a retirada deste do local. O homem foi a óbito e reconhecido por policiais do 7º BPM como um dos envolvidos no ataque criminoso à guarnição no dia 20/11/2021", afirmou a PM do Rio no texto.

Em janeiro, o corpo de um homem de 28 anos foi encontrado por um mergulhador no Canal da Barra, na Barra da Tijuca, na zona oeste carioca.

Em outro episódio, na noite do último dia 04, o corpo do jovem negro Cauã da Silva dos Santos, 17, foi encontrado em um valão na comunidade do Dourado, em Cordovil, na Zona Norte do Rio.

O jovem foi morto com um tiro no peito e, de acordo com a família, o disparo teria partido de um policial militar. Além disso, os familiares afirmam que o corpo foi jogado no valão por policiais.

Procurada, a PM informou que "a 1ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar (DPJM) já instaurou um Inquérito Policial Militar para apurar todas as circunstâncias do caso".

GRAMPEADO, JULGADO E MORTO

Em 10 de fevereiro de 2019, Gracielle fez um registro de ocorrência para comunicar o desaparecimento de Patrick. No documento, ela relata que o jovem teria entrado para o tráfico para "conseguir um aparelho de telefone celular".

Segundo a mãe de Patrick, assim que foi integrado à facção Terceiro Comando Puro, o jovem ganhou um smartphone grampeado pelos bandidos e foi pego ao trocar mensagens com um primo que morava em uma favela controlada por um bando rival.

Após a descoberta, Patrick teria sido submetido a um "tribunal do crime" e morto por volta das 19h do dia 8. O assassinato foi informado a Gracielle por moradores da favela, conforme ela relata no documento registrado na 33ª Delegacia de Polícia, em Realengo.

Até hoje, Gracielle sente "nojo" quando passa nas proximidades do Fumacê.

"Não enterrar filho é a pior dor que tem", afirma. "Conto a história dele para que não se repita com outros."

Para Graham Willis, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, a ocultação de corpos em áreas alagadas obedece a uma dinâmica diferente da verificada nas valas clandestinas.

"A ocultação pontual de um cadáver ou ossada é feita por quem tem medo de ser descoberto pelo impacto político que aquilo pode ter, as intervenções do Estado que pode gerar e outras consequências. Já o cemitério diz: 'Somos nós que mandamos aqui'".

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