DIÁRIO DE DEKASSEGUI

12 horas em pé, movimentos mecânicos e cronometrados: a rotina dos imigrantes nas fábricas japonesas

Juliana Sayuri Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

A reportagem de TAB traz o relato da jornalista Juliana Sayuri, que passou três meses trabalhando em uma fábrica japonesa. A experiência, contada em forma de diário, é de fins de 2019, mas retrata condições que marcam o fenômeno dekassegui até hoje. A história é dividida em três partes. Na Parte 1, a repórter narra o choque dos primeiros dias de treinamento. Na Parte 2, revela a rotina desgastante de operar em uma linha de montagem. Na Parte 3, descreve as tensas reuniões com a chefia e sua despedida da fábrica. Os nomes citados são fictícios, para preservar a identidade dos imigrantes.

PARTE 2: A LINHA 6-A

23 de outubro

Entrei na 6, a "linha do Honda".

Divididas em lados A e B, na linha trabalham dez operárias: duas kensas iniciais, quatro tepus e duas kensas finais.

Kensas iniciais triam as peças entregues pelo seikei e as passam, uma a uma, para as tepus (diz-se algo como "teipo"). Tepus, que trabalham em estações inclinadas, fixam peças, passam fitas adesivas e acrescentam acessórios, como almofadinhas e pinos. Kensas finais fazem a última vistoria na calha. Se tudo estiver certo, elas embalam as peças, em pares, incluem o manual de instruções e passam para o kompo, o empacotamento em caixas de papelão etiquetadas com a marca "made in Japan". Eu me tornei a kensa final da linha 6A.

Iris é a kensa inicial deste lado. É, segundo os gráficos pregados no corredor do galpão, a operária que mais deixa passar furyo. "Iris ichiban, que orgulho! Número 1 de furyo", ironiza Yukie, uma tepu veterana de humor debochado. "Tá de parabéns, hein", diz, quando alguém erra ou vacila.

Yukie e Ana Miyuki são as tepus. Karina e eu somos as kensas finais.

No treinamento, deram-me para ler um pequeno papel plastificado com orientações para identificar defeitos (0,22 milímetros é aceitável). Agora, na linha, deram-me uma folha A4 plastificada com novas e diversas orientações. Para conferir, devo levar no máximo 15 segundos.

Em caso de erro ou dúvida do que fazer, preciso demarcar a área da peça com lápis branco Tombow 2285, acionar o sinal e chamar um supervisor para avaliar e, se necessário, retirar a peça da linha — o alerta é tão escandaloso quanto um alarme de incêndio.

Karina tem um caderninho com notas sobre as instruções de cada estilo de embalagem e até de quantos pedaços de durex usar. Paulistana, mãe de dois meninos, ela está há 20 anos no Japão e não quer voltar. "Na última vez, não tive coragem nem de pisar na Sé [catedral no centro de São Paulo]", justificou.

A linha 6 roda principalmente as calhas do N-Box, um modelo mini da Honda. Karina me ensinou a envelopá-las como um origami gigante. Nesses primeiros dias, levei 27 segundos para conferir e embalar cada peça, o que é considerado muito lento. Yuuto, um dos supervisores brasileiros, discretamente cronometra todo mundo.

Minhas mãos estavam ardendo. "Qual o truque de vocês pra aliviar a dor?", perguntei. Karina* sugeriu antiinflamatório, munhequeira e Salompas. Yukie imediatamente a interrompeu: "Não ilude a menina. A dor não passa nunca."

Yukie* é rápida como um robô. Depois de 9 anos na fábrica, ela conseguiu tirar 3 meses de licença não remunerada para tratar uma hérnia no pescoço. Voltou a todo vapor. "Você puxando o durex com muita força, daí dói o pulso. O truque é puxar de ladinho. É jeito, não força", orientou-me, impaciente.

Por dia, damos cerca de 6.250 passos (o equivalente a 3,3 km, informa meu smartphone) sem sair do lugar, executando os mesmos movimentos mecânicos o dia todo. É o quadro perfeito para desenvolver LER.

Mas reclamar é "chorar", nos jargões da fábrica. Pedir ajuda, dizer que está passando mal ou não está conseguindo acompanhar o ritmo, idem. Atrasar ou parar a linha é "peidar", considerado inaceitável — é aceitável, porém, peidar literalmente, inclusive em alto e bom som no galpão.

***

31 de outubro

A temperatura marca 13°C. Passei a ir paramentada para uma guerra: meias elásticas para compressão, joelheira e cinta para lombar. Não sei se surtiram efeito ou se simplesmente me acostumei à dor, mas tomei mais confiança e já não "choro" tanto. De 27, meu tempo caiu para 19 segundos.

O único aviso desta manhã foi o lembrete da vacina contra influenza, para que ninguém tenha a "desculpa" de faltar por causa de H1N1. Não há folga: dia não trabalhado é dia não pago, exceto pelo yukyu, os 10 dias de férias remuneradas por ano, que podem ser reivindicadas com 6 meses de trabalho; um direito inexistente aqui, onde os funcionários não ousam pedir e, se pedem, ouvem "não".

Dias atrás, Alice*, a primeira kensa da linha 5B, faltou; no dia seguinte, foi levada pelo líder à sala do shachou para se justificar: passou mal por cólica menstrual. Não sei se Letícia*, a outra novata, sabia das cobranças, mas, na entrevista, lembro que ela frisou ter posto um DIU para minimizar cólicas e, assim, garantir não faltar à fábrica.

Letícia, 25, era nutricionista no Brasil. Fez faculdade via ProUni e cogitou emendar um mestrado, mas preferiu a porta aberta ao Japão. É articulada e vaidosa: corte chanel moderno e cílios curvados, vem de batom e um pouco de bálsamo (BB cream) para disfarçar imperfeições no rosto. "Você é nova aqui no Nihon, né? Nihon é Japão, cê sabe? Burajiru é Brasil. Brasileiro se diz bu-ra-ji-ru-jin", ela silabou, sorrindo.

Julia*, 21, estava enjoada e vomitou no galpão, durante o treinamento. "Eram 14h da tarde. Liguei para o tantousha, pra pedir pra sair. Ele foi até a fábrica, me entregou um remédio para náusea e me mandou continuar até as 20h, como todo mundo", contou, enquanto conversávamos no fumódromo no intervalo.

A área de fumantes é um tipo de mezanino do galpão, um aquário amarelado pela nicotina, onde se apinham 11 pessoas sentadas e 4 pessoas de pé. Fuma-se e joga-se Candy Crush, em silêncio.

Fumando um cigarro mentolado, Julia, gay, olhos puxados, piercing no nariz e braço tatuado coberto por uma manga longa preta, diz que saiu de São Paulo para "recomeçar" no Japão. "Ou melhor, para fugir dos meus pais e ser livre", corrigiu-se. "Que liberdade, hein...", suspirou no último trago, "dá um tiro na minha testa pra ver se me liberam pra ir embora?".

A fila para bater o cartão de ponto demorou mais do que o usual. Além das máquinas de ponto cartográfico, bastante bagunçadas entre japonês e português, há um único aviso ali, impresso em caixa alta: "Chiclete dá kubi!", isto é, é motivo de demissão.

No último dia do mês, todos fotografam os cartões com seus smartphones, para depois conferir o número de horas com os holerites, que são entregues em envelopes no dia 20 do mês seguinte. "É o único dia feliz", definiu Yukie.

1º de novembro

Faz 6°C e o frio faz as mãos ficarem petrificadas. "De manhã, não dá nem pra apertar o tubinho da pasta de dente", abreviou Ren, durante um café antes da reunião do shachou.

Esta é uma reunião diferente das demais, alertaram-me. É o balanço mensal, com protocolo específico: as cadeiras são todas viradas na direção de um pequeno púlpito instalado ao lado da TV; o diretor dá lembrancinhas aos aniversariantes do mês; depois, discursa ao longo de uma hora.

"De 1º de novembro de 2018 a 31 de outubro de 2019, a fábrica deixou de lucrar 100 milhões de ienes", iniciou. Segundo o shachou, 50% da responsabilidade desta queda é da matriz, que antes pagava mil ienes por peça e passou a pagar 800.

A fábrica faz parte de uma holding, adquirida recentemente por um grupo gigante, fundado na capital japonesa em 1876. A fábrica não possui website e meu crachá diz apenas "centro de tecnologia de produção". Se ninguém sabe o nome do shachou que tanto temem, que dirá da matriz, da holding ou do titã de Tóquio.

Os outros 50% de responsabilidade, prosseguiu, foi a queda de qualidade. "É um entra-e-sai de pessoal, que faz variar a produtividade. Precisei subir o salário para atrair gente", declarou.

20 de novembro

Sabrina Miki* estava agitada no ponto de ônibus às 6h40 da manhã.

"Menina, te contei que meu marido comprou um CX6? A gente há 15 anos indo e voltando pra lá. A gente se conheceu em uma fábrica, onde meu pai era tantousha. Aí conversa vai, conversa vem, a gente namorou, casou, voltou para o Brasil, teve filho, voltou pro Japão e tal e nunca teve nada. Lá no Brasil, um Honda Fit, no máximo. E a gente pensando, poxa, só trabalho, quando a gente vai se divertir um pouquinho? Aí o Jonathan quis comprar um carro", ela segue, sem interrupção. "Chegando lá, ele me apontou um carro, caindo aos pedaços, coitado, e eu pensei, 'é a vida, bom, deve andar'. Aí ele, rindo, disse 'não, sua louca, não é esse', e me apontou outro do lado, um Nissan CX6 novo. E eu pensei, 'mas meu Deus, quanto zangyo vou precisar fazer pra pagar esse carro!' Mas bem, a gente merece. Nessa fábrica agora é puxado, mas é até fácil, sabe? Antes eu trabalhava em uma fábrica das 8 à meia-noite, todo dia. Mas eu morava do ladinho do galpão. Saía meia-noite, meia hora depois tava dormindo e acordava e já voltava pra lá. Era bom. Aí diz que na fábrica agora o 'coquetel' é café com Coca-Cola e Dorflex, imagina? Eu não, fico só no energético", narrava Miki, acelerada.

O energético Monster é um dos preferidos da máquina automática instalada na fábrica. Kaito, o agitado supervisor do kompo, um brasileiro muito magro e já grisalho, engole uma latinha de 100 ml de café e/ou uma garrafa de 300 ml de energético em cada intervalo. Outros levam complexos multivitamínicos e pílulas de cafeína para aguentar as 12 horas.

Meu tempo caiu para 13 segundos. Karina foi passada para a 6B e eu fiquei sozinha na 6A, "a titular da linha", informaram-me como se fosse um prêmio. Devo dar conta das peças de Ana Miyuki* e Yukie — cada uma faz 60 pares de peças por hora; a meta da fábrica é 48, a média é 39, quer dizer, elas são muito, muito ágeis.

"Rápido, rápido, rápido", diz o shachou, que adora a palavra de fácil pronúncia no japonês. Para passar o tempo, fico contando mentalmente as mil peças embaladas, faço contagem regressiva dos dez rolos de durex número 405 que uso por dia ou simplesmente observo os relógios. "Tive dó de você. Pensei que você não ia durar 3 dias na linha", Yukie confessou dias desses. "Tá ninja agora."

DIÁRIO DE DEKASSEGUI

Leia a história completa, navegando pelos capítulos:

1: A FÁBRICA

Revelações na chegada e os dias de treinamento.

Ler mais

2: A LINHA 6-A

'Bullshit job': a rotina estafante na linha de produção.

Ler mais

3: SEMPRE TEMPORÁRIOS

Cobranças no final da jornada, nos últimos dias do ano.

Ler mais
Topo