DIÁRIO DE DEKASSEGUI

12 horas em pé, movimentos mecânicos e cronometrados: a rotina dos imigrantes nas fábricas japonesas

Juliana Sayuri Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

A reportagem de TAB traz o relato da jornalista Juliana Sayuri, que passou três meses trabalhando em uma fábrica japonesa. A experiência, contada em forma de diário, é de fins de 2019, mas retrata condições que marcam o fenômeno dekassegui até hoje. A história é dividida em três partes. Na Parte 1, repórter narra o choque dos primeiros dias de treinamento. Na Parte 2, revela a rotina desgastante de operar em uma linha de montagem. Na Parte 3, descreve as tensas reuniões com a chefia e sua despedida da fábrica. Os nomes citados são fictícios, para preservar a identidade dos imigrantes.

PARTE 3: SEMPRE TEMPORÁRIOS

27 de novembro

Informei ao tantousha que não ficaria na fábrica além dos três meses de experiência. Otávio ficou furioso, como se meu pedido de demissão fosse uma afronta. "E a fábrica?", questionou.

Tantoushas são intermediários. A serviço de empreiteiras, são responsáveis por manter dekasseguis "na linha": levam para atualizar documentos na prefeitura, abrir conta no banco, declarar imposto, renovar visto. Também levam e conferem compulsivamente a frequência deles nas fábricas.

Muitos dekasseguis vêm para cá através de empreiteiras (não foi o meu caso). No Brasil, eles entregam o pedido de visto nas mãos dessas unidades, que providenciam os documentos necessários — entre eles, um contrato de trabalho, ainda que provisório ou falso.

No Japão, eles são alojados nos apartamentos mobiliados da empreiteira e levados a entrevistas. Ao desembarcar, os dekasseguis devem à empreiteira o aluguel (que varia de 30 a 60 mil ienes por mês), a instalação profissional (70 mil ienes) e as passagens aéreas (cerca de 270 mil ienes). Itens menores também são cobrados, como o uniforme da fábrica (a partir de 10 mil ienes, sem contar os agasalhos de inverno) e o futon do apartamento (10 mil ienes cada).

No fim do mês, a empreiteira também fica com uma porcentagem do salário, que varia de fábrica para fábrica. No fim, muitos dekasseguis ficam financeiramente reféns das empreiteiras.

Vindos principalmente de cidades de São Paulo, Paraná e Pará, muitos imigram com a ideia de trabalhar pesado por um tempo, poupar dinheiro e voltar ao Brasil — é o caso, por exemplo, das novatas Vitória e Letícia. Outros, porém, não conseguem economizar e vão ficando, ainda atrelados a empregos nas fábricas, uma condição de "para sempre temporários", como dizem Kaizô Iwakami Beltrão e Sonoe Sugahara, pesquisadores do IBGE.

Na fábrica de baiza trabalham imigrantes vinculados a diferentes empreiteiras — a de Otávio é a maior. Radicado no Japão há décadas, o tantousha domina o nihongo e tem traços e trejeitos muito nipônicos, mas todos lhe dão um tratamento bastante brasileiro, "Seu" Otávio.

É capaz de dizer disparates como " mal?, mas vai para a fábrica, talvez melhora mais tarde", com uma desfaçatez impressionante, disfarçada pelo tom sereno de senhor septuagenário.

Entretanto, a maioria não critica a empreiteira a viva voz. Imersos na fábrica de segunda a sexta-feira (às vezes, sábado), muitos só aproveitam o domingo, o dia para passear, ir ao mercado, à lavanderia e aos shoppings.

No fim do dia, a notícia do meu aviso prévio se espalhou. "Ninguém faz carreira dentro de fábrica. Sai, sim, filha", disse-me Iris, 54, natural da Bahia. "Só não saio porque não dá pra encontrar emprego depois dos 50."

29 de novembro

De última hora, informaram que o balanço mensal foi antecipado. Após o ritual dos presentes para os aniversariantes de dezembro, o diretor anunciou abruptamente: "Doze é meu último mês como shachou". Depois de 33 anos à frente da fábrica, ele decidiu que era a hora de passar a liderança para o filho.

"O que lamento é não ter conseguido mudar a mentalidade de vocês, principalmente brasileiros. A qualquer momento querem mudar de emprego se não estiverem felizes. Esta fábrica movimenta 22 bilhões de ienes por ano; 85% da produção das peças é fruto do esforço estrangeiro, dos brasileiros. Mas muitos não estão comprometidos com a fábrica."

No atual quadro, 20 brasileiros estão há mais de 10 anos na fábrica. Eles são comprometidos, supôs. Os demais, disse não saber se estão engajados, pois faltam quando têm compromissos, como reuniões anuais dos colégios dos filhos. Ou quando pedem férias — quatro brasileiras pediram 30 dias de ausência entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020 para visitar a família no Brasil. "É impensável na mentalidade japonesa", definiu.

Depois do discurso, saiu da sala. "Bom dia, pessoal", retomou Riku. "A partir do ano novo, ano novo. Pra vocês pode parecer legal, mas o novo diretor não entende nada do serviço. Vou dizer: prefiro o velho gritando do que o filho dele, que só olha gráficos de produtividade. Ele não tem nenhum sentimento por brasileiro, não custa nada mandar metade da gente embora e trocar por vietnamita, que aceita salário menor. Quem quer ficar procura se esforçar, porque ninguém sabe o que vai acontecer", alertou.

"É, fia, nós só somos números", Vitória comentou baixinho.

Bruna, há 7 anos ininterruptos no Japão, fala pelos cotovelos. Na casa dos 20, loira, nissei e paulistana, adora trocadilhos sexuais e tatuagens — uma das suas, no pescoço, diz forgive (perdoe, em inglês). É uma das garotas que vai sair de férias. "Tá contando os dias, hein. Mas o tempo passa rápido, não tem erro: é só acordar, vir pra fábrica, voltar pra casa só pra dormir, acordar...", brincou Ren, encostado na janela do fumódromo. Há 17 anos no Japão, o tempo todo nesta fábrica, Ren só visitou o Brasil uma vez. "Agora nunca mais, né."

17 de dezembro

Não faz muito tempo, o governo japonês aprovou uma série histórica de leis trabalhistas — a primeira proposta de reforma nos últimos 70 anos, que estipulou o limite de 45 horas extras por mês. A nova lei já vale para as maiores empresas; para pequenas e médias, caso da fábrica de baiza, vale desde abril de 2020.

Em outubro de 2019, fiz 48 horas extras. Em novembro, 51. Em dezembro, a fábrica desacelerou e pré-determinou "apenas" 2 horas de zangyo para as linhas, que devem rodar, no mínimo, 10,8 mil peças por dia.

Mal noticiou sua aposentadoria, o velho voltou para dar uma palavrinha na reunião matinal: em novembro de 2018, diz, lucrou 15 milhões de ienes (R$ 723 mil); em novembro de 2019, 4 milhões de ienes (R$ 192 mil). Nem nos melhores livros da minha estante, pensei, poderia ver um retrato tão nu e cru do capital: o shachou lamentou a queda do lucro (o dele) e, mais uma vez, culpou os operários, especialmente kensas e tepus, que não estão dedicados o bastante à baiza.

"Fábrica precisa lucrar. Vocês são pagos para dar lucro à fábrica", definiu. "Não estou feliz", abreviou. Um discurso tão direto e franco quanto cínico.

"Tadinho, vocês não ficaram com dó do velho?", ironizou uma das operárias, horas depois. "Tá osso, o tanto que eu ralo nessa linha, ele devia é dividir esses milhões aí", Yukie respondeu.

Furyo é um unicórnio. Ficamos fixados à sua caça. Dá certa alegria descobrir impurezas miúdas na linha de montagem. Desperta um prazer irracional ver o que os outros não conseguem ver, um tipo de deslumbre diante do manto invisível do imperador, como no conto de Hans Christian Andersen — ninguém tem coragem de dizer que o rei está nu.

Fico pensando se a kensa, a busca por erros milimétricos na peça, é um bullshit job, o tipo de trabalho teorizado pelo antropólogo anarquista David Graeber: um trabalho de merda, ou de mentirinha, uma atividade assalariada cujos executores (nós) secretamente julgamos como inútil e nonsense. E nós nos sentimos obrigados a fingir que há um propósito nelas.

18 de dezembro

Última novata da fábrica, Luiza desembarcou aqui pela segunda vez.

Ao lado do marido, ela trabalhou duro como dekassegui entre 2000 e 2005, juntando dinheiro para abrir um negócio numa cidadezinha do Paraná. Lá, abriram a Casa Brasil, um restaurante simples que consumiu dias e noites de Luiza. Num impulso, sob estresse, decidiu passar o ponto. Arrependeu-se depois: levou um calote do comprador, precisou processá-lo e nunca viu a cor do dinheiro perdido.

O marido queria voltar e começar do zero no Japão, mas morreu num acidente. A filha adolescente pediu para voltar, conforme o desejo do pai. "Enfim, cá estamos. Se nada der certo, volta pro Brasil, pro Japão, pro Brasil...", ponderou.

Luiza é alta, esbelta e forte. Está na casa dos 50 e, nos 40 minutos de almoço, degusta lentamente a marmita de arroz, feijão carioquinha e filé de frango. Muitas operárias trazem marmita de casa, o bentô. De manhã, deixam os tupperwares esquentando no forno elétrico ou, às 12h, disputam a fila do microondas. Outras compram o PF da fábrica, a cerca de 350 ienes, com arroz japonês (gohan), uma proteína (principalmente peixe) e miniporções de salada.

Às vezes, o shachou pega um par de hashis e belisca o bentô alheio, passando pelas mesas do refeitório. Em outras, sozinho, devora um oniguiri, um bolinho de arroz no formato de triângulo.

Às sextas, uma operária leva quitutes brasileiros (coxinha, esfiha etc.) para vender. Outras aceitam encomendas de doces, de tempero também brasileiro, como cocada, brigadeiro e bolo de cenoura com cobertura de chocolate. Para quem está há muito tempo fora, é pelo estômago que se mata a saudade de casa.

25 de dezembro

"Merry Christmas", saudou o shachou. Em japonês, a expressão inglesa se pronuncia "Meri kurisumasu". Enquanto os brasileiros se cumprimentavam e se abraçavam, distribuindo desejos de "Feliz Natal", o velho iniciou o discurso: "Mais uma vez, a última vez", insistiu na importância do compromisso com a fábrica.

Alertou que uma crise financeira internacional está por vir, o que vai desacelerar o mercado de automóveis e, portanto, afetar os pedidos. Avisou que "não gostaria", mas talvez precise demitir dez operários desta unidade para garantir o lucro esperado. "Ganbatte", martelou.

27 de dezembro

Acordo às 5h15. Demoro para conseguir mover as mãos e tento me alongar, mas não consigo. O corpo dói — eu, que já era pequena, minguei de 45 para 42 kg.

Às vésperas do yasumi, o feriado do Réveillon, que desta vez se estende de 28 de dezembro a 6 de janeiro, ruas e vias expressas já estão mais desertas, mas a fábrica ainda está ativa.

Bateu o sinal das 8h10, posicionei-me na linha 6A às 8h13. Fiz os mesmos movimentos mecânicos das 8h13 às 10h10, quando tocou o sinal do primeiro intervalo. Esperei a fila, fui ao banheiro e voltei para a linha. Às 10h20, outro sinal indicou o fim do intervalo. Fiz os mesmos movimentos mecânicos das 10h20 às 12h10, quando tocou o sinal do almoço.

Sentei-me sozinha, como quase sempre. Desta vez, experimentei o bentô da fábrica — devorei o gohan e o filé de arenque, as conservas de ameixa, gengibre e nabo. Às 12h50, voltei para a linha. Fiz os mesmos movimentos das 12h50 às 15h10, com os olhos pregados no relógio, à espera do próximo sinal. Diferentemente de outros dias, porém, a linha parou às 16h para fazermos faxina nas estações: varrer, jogar lixo e, enfim, recolher os pertences para não deixar nada para trás durante o feriado (10 dias não remunerados, aliás).

A fábrica toda foi liberada no tão esperado teiji. Foi meu último dia. Fiquei sensibilizada com o abraço apertado de muitas operárias, que anotaram seus contatos num papel amarelo e me desejaram sorte. Sorte para todas nós, respondi. Depois de muito tempo, apagaram-se as luzes da fábrica.

DIÁRIO DE DEKASSEGUI

Leia a história completa, navegando pelos capítulos:

1: FÁBRICA

Revelações na chegada e os dias de treinamento.

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2: A LINHA 6-A

'Bullshit job': a rotina estafante na linha de produção.

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3: SEMPRE TEMPORÁRIOS

Cobranças no final da jornada, nos últimos dias do ano.

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