Um cheiro nauseante subiu da vala clandestina. Após uma manhã de escavação debaixo de sol forte, em dezembro de 2020, restos mortais de três pessoas despontaram na terra. Um crânio masculino perfurado de bala, uma bermuda azul e, em um dos bolsos, uma carteira repleta de documentos. Um crânio de mulher com ferimento de golpe de facão e um chumaço de cabelos longos e escuros. Outro crânio de homem com aparelho fixo nos dentes.

Ao redor dos corpos, muito entulho. As covas rasas, com um metro de profundidade, foram descobertas em um aterro de descartes da construção civil, no bairro de Pedreira, periferia da zona sul de São Paulo. No local já foram encontrados 27 cadáveres, entre 2020 e 2021. É uma das maiores valas clandestinas conhecidas da história do país. Pode haver mais corpos no terreno, que tem 16 vezes a área de um campo de futebol — cerca de 10% dela já foi revolvida.

O caso chama a atenção para um grave, porém relegado, problema de segurança pública no Brasil: o desaparecimento de pessoas por ação de criminosos e o subsequente homicídio e ocultação dos corpos em valas clandestinas.

Investigação do UOL descobriu que 156 cadáveres foram encontrados em 33 valas clandestinas no estado de São Paulo, a maioria nas cidades da região metropolitana e na periferia da capital, desde 2016. Outros 45 corpos foram localizados em oito valas clandestinas no estado do Rio, no mesmo período. Todos os espaços para desova de corpos considerados pelo levantamento tinham mais de uma vítima.

"O Brasil tem um histórico de valas clandestinas, muitas delas ligadas à ditadura. Hoje, este fenômeno está ligado à ausência do Estado nas periferias das grandes cidades", diz Graham Willis, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

Na ausência do Estado, outros poderes governam a vida e a morte, com uma presença tão durável e permanente a ponto de estabelecer locais para jogar corpos de pessoas que se opõem a esse projeto
Graham Willis, que estuda grupos armados no Brasil há 18 anos

O número de pessoas enterradas e ainda não localizadas pode ser muito maior. Só no estado do Rio, o Disque-Denúncia recebeu 320 relatos sobre "cemitérios clandestinos" nos últimos três anos (2019 a 2021), de acordo com levantamento feito pela instituição a pedido da reportagem. A maioria das denúncias é na cidade de Angra dos Reis e em quatro bairros da zona oeste do Rio: Jacarepaguá, Taquara, Guaratiba e Realengo.

Entre os casos descobertos, a autoria é, em geral, atribuída ao crime organizado — mesmo quando as investigações não denunciam ninguém. No Rio, cinco das oito valas clandestinas estavam em áreas dominadas por milícias. As outras três, em locais ocupados por facções diversas.

Já em São Paulo, a polícia vincula quase todos os casos ao "tribunal do crime" do PCC (Primeiro Comando da Capital), a maior facção do país — "tribunal do crime" é o termo que se popularizou para se referir aos julgamentos que o PCC faz daqueles que violam suas regras. Em apenas uma das valas levantadas pela reportagem no estado, as investigações apontaram a participação de um agente de segurança — um guarda municipal.

"Há um poder paralelo que quer dominar a vida e a morte nas periferias, onde o Estado menos está presente. E nós precisamos barrar isso", diz Eliana Vendramini, promotora que coordena o Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos) do MP-SP (Ministério Público de São Paulo).

"Mas presumir que o tribunal do crime está por trás de todos os casos é um erro crasso. Na comunidade em torno do aterro de Pedreira, era público que aquele espaço era usado para desova de corpos. Então, qualquer violência pode ter ali um espaço seguro de ocultação de cadáver", prossegue Vendramini.

MAIORIA NÃO É IDENTIFICADA

O Brasil não tem estatísticas sobre valas clandestinas. A reportagem questionou as secretarias responsáveis pela segurança de todas as unidades da federação a esse respeito, mas a maioria respondeu que não era possível levantar esse tipo de dado. Nos registros policiais de encontro de cadáver ou ossada, não há uma padronização para indicar se havia mais de uma vítima no mesmo local, por exemplo.

Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública informou que "não tem elementos para essa diferenciação". Acrescentou que "todos os casos de encontro de corpos ou remanescentes humanos são devidamente apurados por meio de instauração de procedimento investigativo".

O Rio também informou que não consegue buscar por casos de valas clandestinas no sistema de dados estadual. A Polícia Civil fluminense não respondeu quais são as estratégias para combater o problema.

Sem dados oficiais, para localizar os casos de valas clandestinas, o UOL levantou ocorrências citadas na imprensa e depois buscou documentos públicos sobre cada uma delas. Em São Paulo, os registros foram conferidos em boletins de homicídio, morte suspeita e encontro de cadáver. No Rio, foram confirmados com fontes oficiais.

A maioria das vítimas jamais tem a identidade descoberta. A reportagem cruzou os boletins de ocorrência de São Paulo com registros do IML (Instituto Médico Legal) e localizou 60 pessoas identificadas entre as 156 vítimas (38%) do estado. Pela Lei de Acesso à Informação, a Secretaria de Estado da Polícia Civil do Rio informou que reconheceu 7 das 45 vítimas (16%).

A ausência de dados oficiais também esconde a cor daqueles cujos corpos foram enterrados em valas clandestinas. Porém, sabe-se que as maiores vítimas da violência urbana no Brasil são jovens negros pobres e moradores de bairros periféricos. Em 2020, 76% das vítimas de homicídio eram negras, de acordo com a última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

No caso da vala clandestina de Pedreira, apenas 5 das 27 vítimas foram reconhecidas até agora. Uma delas é o homem de aparelhos, encontrado com outras três pessoas na mesma cova rasa: Daniel Gois, 31 anos, negro, desaparecido quase três anos antes, em março de 2018.

"Existem milhares de famílias que não têm notícias [sobre os parentes desaparecidos] porque, quando enterra em cemitério clandestino, ninguém sabe. Foi uma eventualidade o aparecimento do corpo do Daniel", diz um familiar.

A polícia jamais procurou por Daniel. No dia seguinte ao desaparecimento, a família recebeu o comunicado de que ele havia sido assassinado em um julgamento do PCC na zona sul de São Paulo, justamente a região onde o corpo foi achado. A informação chegou à polícia no mesmo dia. Apesar dos indícios de crime, não houve investigação.

O corpo de Daniel só foi encontrado porque a polícia estava buscando outro desaparecido, que também teria sido sequestrado e morto pela facção paulista. A apuração do caso levou as autoridades até a vala clandestina de Pedreira.

Se dependesse dos esforços da polícia para investigar o desaparecimento de Daniel, o destino que seus algozes traçaram para ele poderia ter sido cumprido: um assassinato sem corpo, que não entra na estatística de homicídio, apenas na de desaparecimento, e que raramente coloca suspeitos no banco dos réus.

VÉSPERA DE ANIVERSÁRIO

Daniel Gois decidiu comemorar seu aniversário de 31 anos, em 2018, com uma surpresa para sua mãe. Passariam a data juntos, em Cotia, região metropolitana de São Paulo. A mãe sentia saudades. Fazia alguns meses que o filho havia se mudado para Santa Catarina.

Na véspera do aniversário, já em Cotia, Daniel recebeu uma ligação para se encontrar com uma mulher. Imediatamente, saiu de casa. Não voltou na manhã seguinte. Quem tentava lhe dar parabéns pelo telefone encontrava o celular desligado.

Às 10h53, sem conseguir falar com o filho, a mãe de Daniel deixou uma mensagem no perfil dele no Facebook: "É muito duro ter você assim longe de mim, mas eu entendo que tudo é uma questão de escolhas. Hoje [é] um dia especial, seu aniversário". O pai de Daniel e alguns amigos também celebraram a data na rede social.

Até que, às 19h58, uma amiga de Daniel postou um texto de pêsames: "Lamentável. Descanse em paz meu parceiro". A família se desesperou. Logo, recebeu a informação: Daniel não iria voltar para casa. Tinha sido morto, e seu corpo, ocultado.

No final da noite, às 22h46, o pai de Daniel foi à delegacia para registrar um boletim de ocorrência de desaparecimento. Não falou sobre o PCC. Em seguida, à 0h22, a pessoa que postou a mensagem de pêsames compareceu para ser ouvida. Narrou um telefone sem fio: um amigo lhe disse que ouviu de alguém com o codinome "Miojo" — cuja identidade não foi informada para a polícia — que Daniel foi assassinado por ter dívidas com a facção.

A ação policial parou por aí. Ninguém mais foi ouvido, nenhuma providência foi tomada. Para a família, Daniel estava morto. Para o Estado, era mais um boletim de ocorrência de desaparecido. A unidade da Polícia Civil que deveria ter investigado o desaparecimento tinha, à época, apenas um investigador de polícia e um escrivão para cuidar de mais de 30 casos mensais.

"Eu já sabia que não ia encontrar mais meu filho vivo. Estava só preocupado em um dia achar o corpo, pelo menos, e fazer um enterro digno para ele", diz o familiar de Daniel. Os restos mortais foram identificados por DNA em agosto de 2021, três anos após o desaparecimento. Apenas o pai esteve presente no sepultamento. A mãe, muito abalada, não conseguiu comparecer.

"Se todo mundo sabe o que aconteceu com a vítima, menos o Estado, é hipocrisia", diz a promotora Vendramini.

Valas clandestinas

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CRIMES BÁRBAROS, SEM SOLUÇÃO

Não há uma estratégia de segurança pública para buscar ativamente por valas clandestinas. Além disso, as regiões metropolitanas de São Paulo e Rio estão repletas de áreas isoladas passíveis de se tornarem pontos de ocultação de corpos. No Rio, muitos desses locais são impenetráveis pela polícia, dificultando ainda mais o trabalho policial.

Dessa forma, as valas clandestinas são encontradas, em geral, por acaso ou por denúncias anônimas. O penúltimo caso identificado pela reportagem, em 30 de novembro de 2021, foi descoberto durante uma patrulha de rotina da Guarda Civil Metropolitana ambiental nas margens da represa Guarapiranga, zona sul de São Paulo.

Os guardas viram o que parecia ser uma cova. Começaram a escavar e logo sentiram o odor de corpos em putrefação. Pararam quando visualizaram a mão de uma vítima recém-enterrada e pediram auxílio da polícia. No total, sete corpos foram retirados do local.

O primeiro cemitério clandestino da listagem do UOL, de fevereiro de 2016, foi encontrado a partir de indicações dadas por um denunciante. Segundo essa pessoa, o PCC matou e enterrou vítimas em um matagal do Jardim Ângela, também na zona sul paulistana. A partir dessa informação, a polícia encontrou cinco corpos.

Dias depois, outra pessoa pediu para ser incluída como testemunha protegida no caso. Disse que abriu as covas para o PCC e que um colega que teria ajudado no serviço foi morto depois da descoberta da vala, suspeito de ter "caguetado" — passado a informação para a polícia. Agora, a própria testemunha dizia estar jurada de morte.

Alguns poucos casos são descobertos a partir de investigação. No fim de janeiro, depois de meses de apurações sobre tráfico de drogas, a polícia encontrou uma vala clandestina com cinco corpos em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Entre eles, uma escrivã de polícia torturada e o cadáver de um homem decapitado e com as mãos decepadas.

Também fruto de investigação foi o encontro de uma vala clandestina em Itaboraí, região metropolitana do Rio, em 2019, a partir do cruzamento de registros de desaparecidos com relatos de testemunhas. O local era controlado pela milícia ligada ao ex-policial militar Orlando Curicica, hoje preso. Em dois dias de escavação, foram achados 13 corpos — o caso com mais vítimas no Rio identificado pela reportagem.

Mas é raro que as buscas em valas clandestinas durem mais de um dia, como em Itaboraí. Em geral, são dadas por encerradas após a primeira operação, mesmo que ainda haja suspeitas de que existam mais vítimas no local.

Em Carapicuíba mesmo, a polícia anunciou que deve haver 30 corpos no mesmo terreno onde foram encontrados os primeiros cinco. Mas há dois meses não são feitas novas buscas.

Da mesma forma, em um só dia de operações, em novembro de 2021, a polícia encontrou 14 corpos em um terreno rural de Sorocaba, no interior de São Paulo. A delegada responsável pelo caso disse que certamente havia mais corpos no local. Quatro meses depois, a polícia não fez novas escavações.

O caso com mais dias de buscas é a vala do aterro de Pedreira, com sete escavações até agora. O ponto de referência da polícia foi um duto de ar pichado com a palavra "Pantanal", em alusão ao Jardim Novo Pantanal, comunidade com cerca de 6.000 habitantes que cerca o aterro, seguida de um símbolo que lembra uma cruz e um irônico "bem-vindo".

Todo o entorno do duto pichado foi escavado, mas a polícia acredita que haja mais corpos em outros pontos do aterro. Um dos locais pendentes de escavação fica aos pés de uma pequena árvore, plantada há poucos anos. Segundo informações recebidas de informantes, o plantio foi a forma encontrada por uma família para marcar o local onde um parente teria sido enterrado. Uma tentativa silenciosa de exercer o luto em um território controlado pelo crime.

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GARGALO NO EXAME DE DNA

Todo reconhecimento é, essencialmente, uma comparação: entre a digital da vítima e a biometria cadastrada na hora de tirar o RG; entre o DNA do resto mortal e o de um familiar; entre ossos ou arcadas dentárias e radiografias feitas em vida. Exceto no caso da digital, acessível em bancos de dados públicos, todas as outras formas dependem muito da colaboração da família do desaparecido. Mas isso nem sempre ocorre.

Na vala clandestina de Pedreira, duas das cinco vítimas identificadas nem sequer eram dadas como desaparecidas. A polícia acredita que muitas famílias não comunicam o sumiço ou por terem medo ou por sofrerem ameaça de grupos armados envolvidos no homicídio.

"Boletins de ocorrência [de desaparecimento] nem sempre são registrados, então a polícia não tem estatística de quantas pessoas somem e podem estar no rol de cadáveres que foram encontrados em Pedreira", diz o delegado Rodolpho Chiarelli, que liderou a equipe responsável pela descoberta da vala clandestina até deixar o caso, em janeiro.

Essas duas vítimas sem boletim de desaparecimento só puderam ser identificadas por dois motivos. Primeiro, porque foram encontradas pouco tempo após a morte, ou seja, com corpos pouco decompostos, sendo ainda possível colher a digital. Segundo, porque tinham carteira de identidade em São Paulo.

Não existe no país uma base de dados com a biometria de todos os brasileiros. Os registros são estaduais. Também não é praxe que a polícia solicite busca de digitais em outras unidades da federação. Dessa forma, uma digital colhida em uma cena de crime costuma ser procurada apenas no próprio estado.

Outros 22 corpos da vala de Pedreira continuam sem identificação. Todos passaram por análise minuciosa do Núcleo de Antropologia do IML de São Paulo, reconhecido por sua excelência, apesar do baixo número de profissionais — 39% dos cargos de médico legista no estado estão vagos. Quando não consegue identificar uma vítima, o grupo encaminha amostras para exame de DNA. É aí que está o principal gargalo.

Até poucos anos atrás, a disponibilidade do exame na polícia paulista era tão limitada que eram analisados apenas casos em que houvesse uma suspeita concreta — ou seja, quando havia indicações de que um resto mortal específico era de determinada pessoa.

No entanto, desde 2013 o Brasil tem um banco de dados de perfis genéticos, criado justamente para ajudar a identificar crimes e a localizar desaparecidos, o RIBPG (Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos). Em tese, devem ser incluídas informações do DNA de todos os restos mortais sem identificação e também de familiares de pessoas com paradeiro desconhecido.

Mas a fila para inclusão de casos ligados a desaparecidos na RIBPG é enorme. Só em São Paulo, 7.314 amostras de DNA de restos mortais antigos e ainda não identificados aguardam processamento. Em todo o Brasil, são mais de 21 mil.

Sem a confirmação da identidade das vítimas, a investigação sobre valas clandestinas trava. "A identificação da vítima é primordial. Através da vítima, eu sei quem ela era, seu meio de vida, o que fazia, se era envolvida com droga ou não, se era criminosa ou não, quem são seus familiares. Sem identificação, a investigação não tem como persistir", diz o delegado Chiarelli.

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CARTEIRA NO BOLSO, NÃO IDENTIFICADO

Um dos 22 cadáveres ainda não identificados na vala de Pedreira é o que carregava uma carteira no bolso da bermuda, encontrado na mesma vala que Daniel Gois. Ali estavam a habilitação de motorista, dois cartões de banco e até um cartão de visita. Todos tinham o nome de Darcio de Souza, de 30 anos.

Darcio era amigo de Daniel. Os dois desapareceram nas mesmas circunstâncias. Um mesmo boletim de ocorrência registra o desaparecimento de ambos.

Por volta das 7h do dia do aniversário de Daniel, poucas horas depois de o amigo sumir, Darcio mandou mensagens de WhatsApp para sua esposa: "Tá tudo bem aí em casa? Ninguém entrou aí?".

"Eu fiz merda, mas depois quando eu chegar eu explico", prosseguiu Darcio, que estava na casa dos pais. Depois dessa mensagem, um carro teria parado em frente à residência e ele teria sido obrigado a embarcar.

Apesar de muitos indícios levarem a crer que o corpo com a bermuda seja mesmo o de Darcio, a identidade tem de ser confirmada por um exame técnico — a polícia precisa considerar, por exemplo, que a carteira poderia estar no local por outro motivo.

Nesse caso, devido ao estado de decomposição do corpo, o único exame técnico possível para identificação é o DNA. Amostra genética do cadáver que carregava a carteira já foi coletada para análise, mas a família de Darcio não havia feito o exame até o final de 2021, apesar de solicitação policial. Após contato da reportagem, em janeiro, um familiar compareceu ao IML para coletar amostra. O resultado deve sair em até seis meses.

Assim como no caso dos restos mortais, o processamento do DNA de famílias de desaparecidos também está muito atrasado em São Paulo. Mais de 3.000 estão cadastradas no IML. Mas menos de 500 tiveram suas informações genéticas incluídas no banco nacional.

Sem a confirmação da identidade de Darcio, o estado civil de sua mulher continua "casada", quase quatro anos após o sumiço. Eles não tiveram filhos, o que impediu que ela providenciasse a coleta de DNA para reconhecimento. No ano passado, sem ter como provar a morte de Darcio, entrou na Justiça para se separar, fazendo uma declaração de ausência.

DUPLA OCULTAÇÃO: ENTERRO E EXUMAÇÃO

Em junho de 2021, duas amigas desapareceram em um baile na favela de Paraisópolis, zona sul de São Paulo. Júlia Garcia, 26, e Cláudia Menezes, 35, teriam sido julgadas e mortas pelo PCC por supostamente colaborarem com a polícia.

Doze dias depois do desaparecimento, e após buscas policiais em Paraisópolis, os corpos das duas amigas foram abandonados no acostamento do Rodoanel, importante eixo viário de São Paulo. Estavam sujos de terra e cal, denotando que haviam sido enterrados e, em seguida, desenterrados. A cal é usada para acelerar a decomposição.

O caso foi visto como uma tentativa de evitar que a polícia continuasse a busca, o que poderia levar ao encontro de uma vala clandestina, com mais corpos.

Em episódio semelhante, Amanda Palha, 26, desapareceu na zona norte de São Paulo, em 2018. Teria sido sequestrada por um ex-namorado, ligado ao PCC, para ser julgada pelo tribunal da facção. Os criminosos também suspeitavam de que ela fosse informante.

A polícia fez diversas tentativas de encontrar Amanda. Só conseguiu achar, em 2020, uma cova aberta em Francisco Morato, região metropolitana de São Paulo, sem corpo, mas com um aplique de cabelo e um tênis. Exame de DNA confirmou a presença de material genético de Amanda no aplique.

Segundo denúncia do MP-SP, a vítima teria sido morta e enterrada no local, mas, em seguida, os criminosos teriam levado o corpo para outro lugar. Os restos mortais de Amanda nunca foram encontrados.

TESTEMUNHAS SILENCIADAS

Os amigos Daniel Gois e Darcio de Souza teriam sido julgados pelo PCC e condenados à pena de morte sob acusação de terem roubado a facção, segundo informações recebidas pelas famílias. A mulher com quem Daniel foi se encontrar também teria sido morta com eles. Daniel havia sido preso em flagrante meses antes por receptação de carro roubado. Já Darcio não era processado por nenhum crime.

Um amigo de longa data de Daniel e Darcio teria participado do julgamento. Na madrugada em que Daniel sumiu, e horas antes de Darcio desaparecer, essa pessoa estava em uma padaria na zona oeste de São Paulo quando recebeu um telefonema e saiu às pressas com seu carro, alugado. A partir daí, também sumiu. Seu celular ficou desligado. Naquela noite, sua família foi à delegacia comunicar o desaparecimento.

A princípio, as famílias de Daniel e Darcio achavam que esse outro amigo também havia sido morto pelo PCC. O nome dessa terceira pessoa consta, inclusive, no boletim de ocorrência de desaparecimento dos dois amigos. Mas, 20 dias depois, o homem reapareceu diante das autoridades policiais, por espontânea vontade.

No momento do registro do desaparecimento dessa pessoa, os dados do veículo por ela alugado foram inseridos no sistema policial, bloqueando qualquer operação junto à locadora. O homem, então, precisou ir à delegacia para informar que havia reaparecido — juntamente com o veículo.

Na ocasião, a polícia apenas registrou o reaparecimento, sem nada questionar a respeito dos outros dois. Uma testemunha chave entrou e saiu da delegacia sem que nada lhe fosse perguntado. O homem precisou voltar à delegacia uma segunda vez para corrigir dados do veículo. Novamente, não foi ouvido.

Para as famílias de Daniel e Darcio, o amigo que sobreviveu não tem relação com o crime. Seria, ele também, uma vítima, convocado pelo PCC para testemunhar no julgamento e depois liberado para viver nas sombras, sem jamais relatar nada do que presenciou. A reportagem não conseguiu contato com ele.

"Cada vez que [um grupo armado] condena, julga, mata e enterra, logicamente a pessoa que mora ao lado, na vizinhança, não vai falar nada. Ela pensa: 'Se eu falar, também vou morrer'. Isso acaba gerando uma lei do silêncio. As pessoas, com medo, não falam. A gente precisa de informação para trabalhar. Sem informação, a polícia investigativa não funciona. Isso vai aumentando o poder paralelo das facções criminosas", diz o delegado Chiarelli.

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