Curiosidade e desejo: como a sauna gay se tornou meu habitat natural
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Eu já tinha dado três voltas em torno do largo do Arouche até encontrar o tal endereço. Era um paredão cinza acima de qualquer suspeita, forrado por uma fértil trepadeira atrás de um canteiro — atrás da moita.
Visgo-do-diabo.
A planta enfeitiçada dos livros se esgueira sorrateira até laçar os membros de sua presa desavisada. A tensão só a faria acelerar o abate. A única escapatória era relaxar.
Relaxei então. Respirei fundo e entrei pela portinha que daria acesso ao desconhecido. Era minha primeira vez em uma sauna, e eu não queria falhar em nenhum passo do que mais parecia um rito de passagem.
Uma passagem eu não sabia exatamente para onde. Tinha certa curiosidade e um forte desejo: camadas e camadas de tesão fermentadas em um coquetel explosivo de hormônios, deseducação sexual e desconexão. Era uma era pré-Tinder, pré-Grindr, e minha bolha de amigos mal interceptava os círculos onde ser gay é um verbo conjugado com tanta eloquência.
Sabe o discreto e fora do meio? Eu era o próprio.
Só faltou me avisar que, de discreto, fora da sauna eu não tinha nada. E o meio que eu frequentava estava nas beiradas, na noite escura entre as árvores, nos becos, nos banheiros de parques, nos cinemões do centro. A clandestinidade dos discretos, dos adictos, dos casados e pais de família, dos sacerdotes hipócritas.
E dos aflitos, aterrorizados por trazer à luz a obscuridade do desejo.
Eis que lá estava eu, onde ninguém jamais poderia me ver. A sauna.
Por "sauna", compreenda-se um local onde se faz muita coisa — inclusive pegar uma sauna. Ora: são homens nus (ou quase) relaxando em um ambiente cheio de fumaça, de difícil visibilidade. Não me pergunte exatamente quando, mas com o tempo o lugar se tornou sinônimo de pegação gay.
Eu já tinha ouvido histórias variadas. Amigos que iam absolutamente sem pudor. Outros mais pudicos, que consideravam o espaço um antro de depravação. Um mais sensível dizia sempre que sentia uma "energia pesada". E outro, dado a aditivos, narrava suas perigosas viagens por dimensões extraterrenas.
Na minha mente pouco matemática, custava fazer um balanço de todos os relatos. O mais perto que eu chegava era ver um pornô ou outro gravado em um desses lugares.
O que vi, porém, não era nada do que poderia imaginar. Eu estava... em uma balada! Paredes de balada, iluminação de balada, música de balada.
Entre o check-in e os armários, tive um relance do ambiente em que me encontrava. No meio do caminho, havia um bar. O barman placidamente servia rapazes, placidamente sentados ao redor do balcão, vestidos apenas com uma toalha ao redor da cintura.
Na parede, janelas redondas, como aquelas de navio, mostravam que do outro lado havia uma sauna a vapor. De uma escada ao lado do bar descia um rapaz sem toalha, sem lenço, sem documento. Vestia a plena confiança do corpo musculoso, o pau glorioso, livre. Olhar altivo, o homem se empenhava em parecer natural. Mas havia um levíssimo movimento nas pálpebras, uma sutil flexão nas sobrancelhas que denunciava: ele estava atento aos olhares, às reações ao seu redor.
Cruzou o recinto colhendo seus louros e me deixou me sentindo léguas abaixo dos portões do Olimpo. Eu, mortal em meio aos semideuses. Mas quem sou eu para criticar a obsessão dos gays por corpos que tanto admiro?
Encontrei a sala onde ficavam os armários e logo achei meu número. Dentro dele, duas toalhas. Era a hora da verdade.
Olhei ao redor e notei outras pessoas chegando ou saindo, uns se vestiam enquanto outros se despiam. Espiei displicente, mas absolutamente atento, rastreando cada pedaço de corpo que pudesse levar minha mente para debaixo da roupa dos outros.
Procurava um pau. Maior que o meu, menor que o meu, não importa. Precisava de um pau, tanto para desejar como para ter alguma referência de onde eu estava, de quem era eu naquela nova fauna em que estava inserido. Um pau, uma bunda, uma barriga, uma coxa, um peito. Precisava ver corpos para descobrir de onde vinha a coragem de circular por ali com tamanha naturalidade. Queria me ver entre eles. Mas não vi.
E isso foi o melhor que me ocorreu.
Pois não havia ali corpo que se assemelhasse um ao outro. Havia rapazes atléticos, esguios, sim, impassíveis em sua armadura de músculos. Mas não só. Havia velhos. Gordos. Peludos. Raquíticos. Havia gente.
Então tirei a roupa, e de repente tudo o que tinha vindo de fora comigo cabia naquele modesto armário. Eu estava nu no submundo: pele, gordura, músculos, ossos, nervos — nervos à flor da pele — num lugar que mais se assemelhava a um labirinto para se perder e dificilmente se encontrar.
Três andares cheios de corredores. A maior parte das portas é para quartos ou cabines com camas. Mas aqui e ali há espaços vazios, pequenos becos, cantinhos. Em cima, sauna seca; embaixo, sauna a vapor. Uma área externa tem piscinas aquecidas, hidromassagem. Um minicinema passa pornô sem parar, assim como telas nos corredores, no bar, nos elevadores e até no caixa.
Um corredor leva para uma área completamente escura — o império dos sentidos durante o breve ócio da visão. Por todos os lados, homens, com ou sem toalha. Para onde se olhasse, os garotos se empenhavam em desafiar a lei da física que diz que dois corpos não conseguem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.
Dura lex: a lei da física é revogada diante da lei do desejo.
Em menos de cinco minutos, eu já não lembrava de qualquer pudor que tinha antes de entrar ali. A sauna já se tornava meu habitat natural — e natural é a forma como tudo se resolve. Ouvi poucas vozes, poucas palavras. Naquela baixa luz avermelhada, o que mais via era uma comunicação não verbal. Reino animal, dança do acasalamento.
O rapaz chega a um recinto. A sauna seca, por exemplo. Instala-se. Vê o que tem ao redor. Investe silenciosamente. Busca o olhar na penumbra. Toca o próprio corpo: acaricia o mamilo, manuseia o pau. Excita os sentidos. Investe na presa. Se aproxima, se insinua. Pele encontra pele. Contato imediato: mãos, língua, rola, cu. A cópula.
O espetáculo logo chama a atenção de quem passa e quem fica. Gente fica ao redor. Uns se contentam com o papel de voyeur, outros fazem o possível para fazer dois se tornarem três ou mais.
A respiração ofegante e um gemido de clímax logo encerram o breve contrato dos sócios: acordo fechado, partes satisfeitas. Eles se dispersam, tomam um ar, circulam pelos outros ambientes até se associarem a outros parceiros em outras rodadas.
Antes que eu me desse conta, era eu no centro da roda, com muitas mãos pelo meu corpo em um abraço que poderia me abrigar para sempre. O trunfo do desconhecido é poder se moldar conforme o desejo. Desci para o submundo para me reencontrar com meu subconsciente.
O rapaz que me apertava e abria caminho meu corpo adentro aproximou os lábios do meu ouvido e disse: "Como um cara como você está solteiro?"
Então finalmente me dei conta: fazia apenas três dias desde o término que me havia tirado o chão — e me feito cair até o inferno. Em busca do luto, quis ir atrás do meu lado mais escuro. Em vez disso, porém, foi meu lado brilhante que encontrei, aquele que queima de desejo.
Saí da sauna com o dia claro. Para trás ficaram alguns pudores. No lugar, eu levava algo novo: um lado desconhecido, visível apenas no escuro.
E a descoberta do meu novo habitat natural.
*D.C. é jornalista e mora em São Paulo
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