Éramos outros. Éramos quase cinquentões. Quase idosos, grisalhos trepando
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Onde ela está? Fui até a recepção. Perguntei se alguém tinha me telefonado ou perguntado por mim. Nada, ninguém. Cheguei a ir até a porta do hotel fazenda, de onde se via a estrada. Carros nos dois sentidos. Nada de anormal. Nenhum meteoro, cataclismo. Voltei para a piscina.
Lívia não vem mais, e não mais nos falaremos, como já não nos falamos há muitos anos . Minha ex-namorada de 30 anos atrás, agora casada e mãe de três jovens, não vem, não vai me mandar cartas, e-mails, eu não vou mandar outra mensagem, não vou insistir, se não quis vir, não quis, teme que o passado atravesse o futuro, treme com a ideia do que possa vir a acontecer. Por que demorava, se bastavam duas estradas, a de Valinhos e a rodovia Dom Pedro? Estaria em quinze, vinte minutos aqui, por autoestradas largas. O sol da região de Campinas ferve. Não deve ter ozônio sobre nossas cabeças. Vamos todos morrer de câncer de pele, torrar como os dinossauros. Vamos secar, flambar.
Terminando o almoço na mesa da piscina, vi uma velha conhecida na minha direção de jeans surrado, camiseta branca, um cinto de couro marrom-claro, a bota no mesmo tom e um boné do Greenpeace afundado. Parecia com pressa, olhando o chão. Cruzei o talher e pedi a conta. Vesti a camiseta. Atravessou toda a piscina e veio direto, com um sorriso na cara. Nem me beijou, foi logo falando. Seus olhos esverdeados, que com o sol ficam mais verdes, se fixaram nos meus, e sorriu com o rosto todo:
— Peguei um puta trânsito, que coisa louca, nesse horário! Não entendo mais nada, tá todo mundo louco. Ainda bem que tenho audiolivro no carro, comprei pra minha mãe, ela adorava, ficaram alguns comigo, comecei a ouvir, me desligo, estava ouvindo Karl Ove, conhece, o norueguês? Não sei soletrar o sobrenome, Knausgård. Esse a com bolinha, como será o som? Já estive na Noruega. Só em Oslo. Num inverno. Você ficava se encapotando. Esperava o carro chegar. Corria e entrava. Não passeei um dia sequer. Só corria para entrar em ambientes fechados, aquecidos. Em Palmas é a mesma coisa. Só que calor. Nem se caminha pelas calçadas. No verão. É abafado. É a capital mais quente. Ficamos correndo de ar-condicionado em ar-condicionado. Sabia que em Palmas tem praia de rio com redes protetoras na água, para evitar ataques de piranhas? Na Noruega ninguém come bacalhau. Bacalhau da Noruega é invenção de portugueses. Os navegadores portugueses pescavam lá em caravelas. É o peixe-bastão, bakkeljau. Você gosta do Karl? Deve conhecer, li uma entrevista dele. Escreve sobre o dia a dia dele, da família, nos mínimos detalhes, expõe todo mundo. Acho meio foda expor todo mundo, a mulher dele, Linda, também escritora, deu uma pirada, mas ele é tão chato que vicia, fica narrando os detalhes, meia hora falando do posto de gasolina em que pararam na viagem, meia hora falando da festinha de criança, meia hora falando da mulher grávida presa no banheiro, e ele sem coragem de arrombar a porta, chamou um chaveiro, cara babaca, como um cara babaca assim pode virar o escritor da moda, entrevistado em todos os cantos, ainda mais com uma obra chamada "Minha luta", isso mesmo, "Min kamp", o mesmo nome do livro do Hitler, falou que fez para provocar, que aquela é a luta dele, que luta? Pra abrir uma porta que o trinco travou? A mulher virou ex-mulher. Machista! Eles tinham um pacto: enquanto eu escrevo livro, você cuida dos filhos. Ele ficou famoso e largou dela. Pior que o livro do cara vicia. Você fica querendo saber o que vai acontecer, mesmo sabendo que não vai acontecer nada. Acho que o propósito é esse, nesse mundo de transformações, em que tudo muda, um cara sugere olhar os detalhes. Olhar já é algo em extinção. Falar também. Ficam todos em suas telas. Meu filho menor, que agora é filha, tem até dificuldade de fala, não entendo o que ela diz, fala pra dentro, engole frases. Dá vontade de dizer "manda um zap". Na verdade, virou Sofia agora. Nunca me acostumo. Sempre falo "o filho que virou filha". Já tá na hora de eu falar "minha filha menor", "a caçula". Ela nem reclama, já está acostumada. A gente que se embanana. Meu marido não se acostumou. Se conformou, mas demorou, com aquela desculpa que todo pai dá quando o filho revela que é gay: "Mas ele vai sofrer tanto...". Mas ela! Ela! Nossa menina! O Karl Ove falou numa entrevista que, sem a ajuda do editor, ele não conseguiria ser o que é. Você também tem um editor que te ajuda? Ele falou que as circunstâncias do trabalho criativo são complicadas, e que todos sabem que o ofício da escrita tem uma enorme mixórdia de neuroses, recalques, aversões, fraquezas, idiossincrasias, alcoolismo, narcisismo, depressões, psicoses, hiperatividade, mania, egos inflados, baixa autoestima, obsessões, deveres, ideias fixas, lixo e preguiça, e num contexto de trabalho com o texto nesses moldes, um conceito como qualidade depende da combinação de autor e editor. Tão estranho o cara escrever intimidades do casamento dele. Escritor é assim, vive uma história de amor com alguém e escreve? Pede autorização? Não é invasão de privacidade? Mulher de escritor deve viver numa paranoia tremenda. Ele vai escrever sobre ontem à noite? Se eu falar isso, ele vai escrever, todo mundo vai saber? Deve ser horrível, como viver num reality show, com câmeras apontadas registrando tudo. O que você está bebendo?
— Água de coco.
— Está tão quente hoje. Vamos pra cama?
Até o garçom que passava meu cartão na máquina se surpreendeu. Digitei a senha, olhei. Ela olhou nos meus olhos, respirou fundo. Aquele olhar que dava a volta no meu cérebro, como uma moto no globo da morte. Me levantei, enxuguei a boca, fechei o iPad, respirei fundo. Ela parecia tão confiante que segurou na minha mão. Fomos de mãos dadas até o quarto. Cruzamos a piscina. Não olhamos para trás. Não tivemos dúvidas ou receios. Incrível que tanto ela quanto eu tivéssemos a mesma ideia, a mesma vontade, e ninguém pensou duas vezes. Era para isso que estávamos lá.
Entramos, nem acendi as luzes, e nos agarramos. Nos beijamos um beijo doce, úmido. Grudados, ela foi tirando a roupa. Eu estava só de bermuda e camiseta. Caímos na cama, ela ficou sobre mim e logo foi me chupar. Pegava nele, massageava e chupava. Me olhava.
— Que gostoso — me disse, sorrindo.
Chupava bastante, parava, me olhava.
— Que delícia — disse. — Teu pau é lindo.
Ela o conhecia. Décadas antes. Nunca tinha me dito isso. Ficou examinando, me olhando sorrindo. Não tínhamos mais aquele corpo delgado como grilos, ela estava forte, estava bem, estava bonita, sua pele tinha óleo cheiroso impregnado, óleo mágico com cheiro de terra, orgânico, de outono, folha seca, comecei a lamber suas pernas, seu quadril, lamber seus peitos, morder levemente os mamilos, estavam firmes, eram pequenos, redondos, beijei-a mais, não parávamos, um deitado sobre outro.
— Me chupa — pediu.
Encaixei a boca entre as pernas dela, eu deitado, ela sobre mim, e lambi até enfiar a língua, estava molhada, muito molhada, gemia e tremia, segurava minha cabeça para eu continuar, fiquei enfiando a língua, lambendo o clitóris, ela gemia alto, mexia o quadril, pegava seus dedos e abria mais os lábios, passava os dedos na minha língua, na minha boca, orelha, nuca, testa, me lambuzando, esticou a mão para trás e pegou meu pau, mas voltou, não conseguia dar prazer enquanto sentia, e agarrou minha nuca, pressionou todo seu corpo no meu rosto, tremeu. Agora nós vamos passar a tarde gozando, sem dor, dúvidas, mixórdias de neuroses, recalques, aversões, fraquezas, egoísmo, egos inflados, baixa autoestima, obsessões, deveres, ideias fixas, preguiça, insanidade, insensatez, pressa, insegurança, inexperiência, impaciência de quem tem dezoito anos. Temos todo o tempo. Treparemos até explodirmos, num bombardeio de tesão. O jato do gozo foi nela. Dentro dela. Uma trepada para nunca mais ser esquecida.
— Onde você aprendeu essas coisas? — perguntei com ironia.
Ela gargalhou aliviada, adorou também, estamos sorrindo à toa, deu certo, deu tudo certo, tinha que ser feito, que bom, que coisa boa, foi demais, foi incrível, deu liga, química, sei lá, foi intenso, e me agarrou de novo, recomeçamos. Repetimos enquanto o sol se punha. O laranja do poente tingiu o quarto de luz. Estávamos encharcados de suor e gozo, lambuzados por desejos represados, a barragem tinha se rompido, despejando um grande amor entre nós.
Ela saiu umas oito horas. Voltou para o marido e filhos. Decidi não dormir. Voltei feliz para São Paulo na mesma noite. Não suportaria mais um dia na piscina de cisnes. Saímos ambos de pernas bambas. Ela foi na frente, com o boné afundado, olhando o chão. Foi engraçado pedir o checkout e o cara de recepção se decepcionar pois iríamos perder o café da manhã incluso. Eu nem bagagem tinha.
A estrada estava cheia, mas estava tudo tão cheiroso em mim. Voltei a 80 km/h relembrando cada segundo, cada sensação, com a pele arrepiada, cheirando a gozo, suor e folhagem. Ao chegar em casa, escrevi a mensagem:
Adorei que apareceu.
Mas não mandei. Vai que...
*
Assim que se deitou no divã, ela começou:
— Falou que não vai sair de casa, diz que estou louca. Sempre diz que estou louca, que eu sou imatura, inconsequente, instável, que estraguei aquela família, arruinei com a vida dele. É um jeito bem fácil de lidar com os problemas. Tem alguém acomodado naquela casa, e não sou eu. Aliás, se acomodou há anos. Ele achava que está tudo bem? Fica em casa o dia inteiro, cuidando do jardim, não gosta de sair, viajar. Fico lendo. Antes, eu não lia tanto. Mas morar isolada... Ele construiu uma casa para me aprisionar. Eu tenho mais energia, sou mais inquieta, preciso de estímulo, os filhos estão grandes, e aí, vou ficar fechada no castelo, do trabalho pra casa e vice-versa? Sabe o que é estranho? Não me sinto nem um pouco culpada. Achei que sentiria. E sabe da novidade? Reencontrei o mocinho. Ele ficou num hotel. Combinamos duas horas. Enrolei pra sair de casa. Tremia toda. Tomei florais e não me acalmava. Enrolei uma hora. Estava com medo de ir. Muito medo. Fiquei enrolando na porta. Eu estava surtando de aflição. Parecia alguém com TOC. Entrei no carro, fumei uma ponta que tinha no cinzeiro de algum filho. Mais meia hora tremendo. Suava. Liguei o ar-condicionado. Fui. Para tomar um café e voltar logo pra casa. Minha mão suava. Me perdi, passei a entrada. Mais um tempão para achar um retorno, fazer a volta. Por que fui fumar? Sei de cor aquele caminho. Achei a entrada. Entrei no hotel. Fui pra piscina. Ele de short, todo molhado. Lindo. Sem camiseta. Ou com? Tomava um coco, tão sexy... Seus olhos brilharam. Parecia aqueles comerciais de plano de saúde, ou de vitamina, com um coroa megassaudável, sarado, meio grisalho. Senti carinho, confiança. Não era o mesmo cara de séculos atrás. Era alguém que, eu sabia, gostava de mim, gostou de me ver, se importou comigo, queria me ouvir. Mas não aguentei. Eu estava derretendo de tesão. Falei para irmos pro quarto. Eu fiquei surpresa. Tremi toda, e para me apoiar ele segurou na minha mão. Suava. Que ousado! Você tá louca?! O que você tá fazendo?! Ele me acalmava. Tem uma barba tão macia. Meu mocinho, confio nele. Ele sabe o que é bom. Sempre me protegeu. Fomos pro quarto... Desculpe... Posso usar o lenço?... Estou bem, está tudo bem, estou chorando de alegria... Horrível isso, o que estou fazendo? Por que fui estragar tudo?... Desculpa, não estou conseguindo parar de chorar... Preciso de água.
Pegou e tomou.
— Acabou o tempo?
*
No nosso segundo encontro no hotel fazenda, semana seguinte ao primeiro, esperei na recepção e ela chegou pontualmente. Fomos direto para o quarto, de onde não saímos até anoitecer. Um quarto maior, uma cama maior, e ocupamos todos os cantos dela. Agarrados, nos beijando, nos chupando mais, mais, mais. Trepando.
— Adoro essa língua, nem é muito mole, nem muito áspera — ela disse, enquanto eu chupava. E depois disse: — Adoro quando você enfia essa língua em mim.
*
No terceiro encontro, só me lembro de ficarmos horas grudados na cama, untados de suor, empapados de óleo da terra, pernas entrelaçadas, eu dentro dela, sem me mexer, o pau dentro dela, nos beijando sem parar, na posição de caracol, em que não se saberia, visto de cima, de quem era aquela perna, aquele abraço, num agarro em que não passava um pensamento, um sopro, um sentimento, muito menos sofrimento. Como dois gêmeos num útero, como um botão de rosa, com as pétalas unidas, como o encontro das águas de um rio e um mar, misturados, doce e salgado. Não comemos, não fumamos, não bebemos, não nos mexemos, até gozar.
— Adoro seu cheiro, sai da pele — ela disse.
— É tão diferente de anos atrás?
Ela não respondeu e começou a me chupar. Não deveríamos fazer comparações com o passado. Nem tocar no assunto. Às vezes, eu perguntava. Era ignorado. Éramos outros. Éramos quase cinquentões. Quase idosos, grisalhos trepando, rugas se envolvendo, dobras. Velhos que não usam camisinha. Velhos tarados! Desgrudar foi um sufoco. Porque tinha o passado entre nós, mas o presente é que comandava. Mas como chegamos aqui? Por conta de uma carta. Ela foi se vestir. E perguntei do nada:
— Por que você me largou quando eu tinha dezoito anos?
Ela riu, acabou de se vestir, olhou as mensagens do celular, viu que estava atrasada, arrumou o cabelo e, antes de sair, mandou:
— Porque sou uma boba.
Resumiu numa frase banal. E se mandou. Porque sou boba. Porque você é egoísta. Frases que martelam para o resto da vida, ditas num impulso irresponsável. Porque errei. Você não era boba. Babaca era eu. Não dá pra consertar aquele cara de dezoito anos, mas me ajude a ser um cara melhor. Onde errei? Por que você se acha boba? Era um babaca com você. Você não era boba.
*Marcelo Rubens Paiva é escritor, dramaturgo e colunista do jornal O Estado de S. Paulo. Este é um trecho de seu último romance, "Do começo ao fim" (ed. Alfaguara).
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