Pediu silêncio e foi assassinado: cacique relata morte de indígena na Bahia
Com 22 anos e dois filhos para cuidar, Vitor Braz de Souza, indígena da etnia Pataxó, só queria descansar no fim da noite do último domingo (13). Havia trabalhado durante o dia numa das barracas na praia de Coroa Vermelha, entre as cidades de Santa Cruz de Cabrália, onde nasceu, e Porto Seguro (BA), onde morreu assassinado a tiros.
O jovem não imaginou que seria esse o seu destino ao reclamar do som alto do paredão que acontecia no território indígena, em Ponta Grande. Foi morto com um tiro na garganta na frente de uma das lideranças da aldeia, que após a conversa com TAB pediu para não ser identificada. Vitor foi levado ao Hospital Luís Eduardo Magalhães, mas não resistiu.
A norma definida pela própria comunidade proíbe a realização de festas e som alto depois das 22h, regra determinada durante a pandemia, também como forma de evitar a proliferação da covid-19. Nos fins de semana, é comum durante o dia a presença de carros com som e grupos que se divertem nas praias próximas à aldeia, atrapalhando a paz das crianças e dos mais velhos. Mas no domingo, logo que o horário limite foi ultrapassado, Vitor, que costuma caminhar ou pedalar 4 quilômetros todos os dias para chegar ao trabalho, foi avisar a liderança que iria, pessoalmente, pedir para que a música fosse interrompida.
A casa onde a festa estava acontecendo fica dentro da aldeia. Construída há aproximadamente três anos, ocupa um terreno vendido de forma irregular. Seu proprietário não é indígena e ele utiliza a casa para passar as férias. Em 2020, depois de uma festa barulhenta, o proprietário havia sido aconselhado a obedecer o regimento interno. Ele teria se desculpado e, desde então, tudo estava tranquilo. Até a noite do último domingo.
O cacique, que viu Vitor crescer, decidiu acompanhá-lo na missão de tentar fazer cessar a festa batizada de "Sigilo Fest", que reunia 200 participantes. A dupla e outros três indígenas da região seguiram para a casa, a poucos metros de onde estavam. Na primeira tentativa, os supostos organizadores do evento admitiram que não sabiam do regimento da aldeia, tampouco que ali era território indígena. Apenas estavam alugando a casa para um evento. Com o argumento de que tinham cobrado ingresso e poderiam perder dinheiro, conseguiram adiar o encerramento da festa e continuar o paredão até as 23 horas, a despeito da vontade dos demais.
Vida de trabalhador
"Temos crianças, idosos, não aceitamos esse tipo de som porque todo mundo dorme cedo. Eles falaram que entendiam. Que, se soubessem que era uma aldeia, não tinham alugado o espaço", relatou o cacique ao TAB.
Por volta das 23h15, sem nenhum sinal de que a festa chegava ao fim, Vitor disse ao cacique por mensagem de celular que iria novamente conversar com os organizadores. Para que o jovem não fosse sozinho, a liderança avisou que o seguiria. Ao chegar à casa de Vitor, contudo, ele já tinha partido.
Enquanto caminhava em direção à festa, recebeu um áudio de Vitor, em que ele dizia estar conversando com os donos da festa. A liderança ainda precisou conversar com uma mulher que se apresentava como uma das organizadoras. Ela insistia em tentar prorrogar mais uma vez o fim da farra, que teve início às 18h, segundo um panfleto divulgado numa rede social. Às 23h30, a mulher pediu para que fosse anunciado o fim da festa e o som foi interrompido.
As coisas pareciam estar resolvidas — finalmente Vitor voltaria para casa para descansar. O cacique, entretanto, estranhou a presença de dois homens e uma mulher no encalço dos dois, já na via BR-367. Vitor morava a cerca de 500 metros de onde acontecia o paredão e próximo à estrada.
A moça, enquanto caminhavam ao lado de Vitor e do cacique, disse lembrar de Vitor "das antigas". Isso soou um alerta. A situação, somada à insatisfação geral com a interrupção da festa, foi o estopim para o assassinato do rapaz.
"Um dos homens começou a discutir com a mulher. Peguei Vitor pelo braço e pedi para ele vir comigo. Quando deu uns passos para ir embora, o cidadão deu um tapa no pescoço dele por trás. Ele virou, revidou o tapa e eles começaram a se embolar", conta.
Antes que pudesse esboçar uma reação, o cacique ouviu o estampido que logo mais se revelaria a causa da morte do jovem. De início, o cacique pensou ser um tiro para cima, de alerta. Quando deu por si, o viu deitado no acostamento. Consciente, Vitor tentou responder, mas sua voz já não saía. O disparo tinha atingido sua garganta. Vitor foi levado para a casa da avó na garupa de uma moto. Desmaiou.
Outro amigo providenciava um carro para levá-lo ao hospital, mas não houve tempo de salvar a vida do jovem, conhecido agitador cultural da região.
Para Tucum, a perda é mais do que dolorosa. "Ele era neto do ex-cacique Jonga, que iniciou a aldeia aqui. Tinha uma amizade muito grande com Vitor, um camarada que me respeitava muito, rapaz bem esforçado. Todo mundo gostava dele", afirma o cacique, que conta ainda ter sido medicado no hospital ao receber a notícia da morte do amigo.
Morte de um camarada
A violência contra indígenas no sul da Bahia tem aumentado, com o acirramento das disputas por terra e desrespeito às tradições. Em 22 de fevereiro, o indígena Josimar Silva foi assassinado a golpes de facão na aldeia Meio da Mata, na cidade de Trancoso (BA). O autor do crime ainda não foi identificado, nem a possível motivação.
"Ontem foi ele, hoje não sabemos quem vai ser, se vou ser eu, um filho meu. As lideranças são descobertas pela própria justiça. A gente precisa de segurança dentro da comunidade, que o governo, junto com a prefeitura, cuidem do nosso povo. Chega de derramar sangue. São 521 anos de sofrimento", resume Tucum.
O suspeito de atirar contra Vitor já foi identificado e o caso está sendo investigado pela Delegacia Territorial de Porto Seguro. Em resposta à reportagem, a Polícia Civil informou que foi pedida sua prisão preventiva.
O homem foi identificado com a ajuda de depoimentos de familiares e testemunhas. A polícia aguarda o resultado das perícias. Informações preliminares indicaram que Vitor foi atingido por dois tiros, mas o dado não foi confirmado, o que só deverá ser esclarecido após laudo do Departamento de Polícia Técnica.
Na manhã de quarta-feira (16), o latido dos cães atrapalhou o sono dos familiares e parentes de Vitor, que se mantiveram acordados, tensos com o que poderia acontecer. Membros da aldeia suspeitam que criminosos tenham estado no local e temem retaliação, após a repercussão da morte do jovem.
A assessoria de imprensa do prefeito, Jânio Natal (PL), não atendeu às ligações da reportagem. Até o momento da publicação, a Funai (Fundação Nacional do Índio) não respondeu à reportagem. Segundo Tucum, o órgão ainda não se pronunciou sobre a morte do jovem, nem procurou alguma liderança para tratar do assunto.
Protestos e casa queimada
Desde segunda-feira (14), um grupo da aldeia Novos Guerreiros se une em protesto e fecha trecho da rodovia onde Vitor foi assassinado. A casa alugada para a festa, que seria de um ex-policial que atualmente advoga em Porto Seguro, foi incendiada.
Na terça-feira (15), um novo ato bloqueou parte da estrada. Tucum e outros líderes cobram celeridade das autoridades na resposta ao crime.
A Prefeitura de Porto Seguro emitiu uma nota lamentando o falecimento de Vitor, desejando "sinceros sentimentos, rogando a Deus para que conforte" seus familiares e membros da aldeia.
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