Só para assinantesAssine UOL

Brasil falha em criar políticas de emprego via dados, dizem especialistas

Com quase nove milhões de desocupados, o Brasil poderia comemorar o fato de dispor de números de qualidade sobre o mercado de trabalho. Mas o país não tem conseguido aproveitar essas informações para criar mais oportunidades de emprego.

Pior: segundo especialistas ouvidos pelo UOL, não há acompanhamento das políticas públicas criadas. Ou seja, não é possível verificar se os projetos estão funcionando como esperado.

Raio-x

O Brasil tem uma disponibilidade razoável de dados sobre mercado de trabalho. É o que diz Mário Magalhães, especialista em políticas públicas e gestão governamental, que já atuou na Secretaria de Políticas Públicas de Emprego do Ministério do Trabalho.

Os principais cadastros com dados são a Rais (Relação Anual de Informações Sociais), o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) e a Pnad. A Rais é um conjunto de informações que as empresas precisam informar ao Ministério do Trabalho e Emprego sobre seus funcionários. O Caged fala sobre os registros de contratações e admissões das empresas. A Pnad, sobre os mercados de trabalho formal e informal do país.

Os dados existentes são importantes e de boa qualidade. Claudia Mazzei Nogueira, coordenadora do Núcleo de Estudos do Trabalho e Gênero da Unifesp, afirma que hoje existem instituições sérias, como IBGE e OIT, que produzem bons materiais. O problema, ela diz, é o que se faz com os dados que existem.

Nós temos possibilidades de diagnósticos do mercado de trabalho e de monitoramento de políticas públicas que estão muito acima do que os órgãos públicos podem fazer em relação a essas políticas públicas.
Mário Magalhães, especialista em políticas públicas e gestão governamental

O que explica a situação

A construção de políticas públicas no Brasil não é baseada em dados. É o que diz Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador sênior da área de Economia Aplicada do FGV Ibre.

O problema não tem a ver com os dados, nem com o mercado de trabalho, é um problema mais grave. Não fazemos políticas públicas no Brasil baseada em evidência, não temos o hábito de ter um programa de governo que é avaliado e se observa o que teve de positivo e negativo para corrigir eventuais falhas e aprimorar o modelo.
Fernando Barbosa Filho, pesquisador do FGV Ibre

Continua após a publicidade

Um bom exemplo de política pública foi o BEm (Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda), destaca o pesquisador. Ela foi criada devido à pandemia e tinha como objetivo reduzir a jornada de trabalho e salários proporcionalmente e suspender temporariamente contratos de trabalho para que os empregos fossem preservados durante momentos críticos.

Mazzei exemplifica a lei de igualdade salarial como uma política feita com bom uso dos dados. Hoje as estatísticas mostram que existe uma diferença salarial entre homens e mulheres, mas nada era feito na prática sobre isso. No julho do ano passado, o presidente Lula sancionou a lei que estabelece igualdade salarial entre homens e mulheres que desempenham a mesma função, com multa para empresas que desrespeitarem a regra.

Apesar de os dados existentes serem bons, eles são de difícil manipulação, diz Magalhães. O especialista cita a Pnad Contínua: o IBGE divulga os microdados, que podem ser usados por pesquisadores qualificados, mas existem algumas limitações de cruzamento de informações importantes na hora de construir uma política pública. Segundo o especialista, o sistema é rígido e insuficiente para o gestor de política pública avaliar o todo em sua complexidade. Ele usa como exemplo a Pnad, que não permite cruzar dados simultaneamente. O pesquisador consegue checar o número de desempregados por idade ou por raça, mas não consegue saber quantas pessoas brancas ou negras de determinada faixa etária estão desempregadas.

O problema é muito mais de ficar olhando esses dados e ver o que eles estão falando do que não ter as estatísticas. Elas estão lá e só não fazem o suficiente a respeito. Eu diria que hoje a questão maior é de a própria política pública poder utilizar esses dados.
Mário Magalhães, especialista em políticas públicas e gestão governamental

Alguns órgãos conseguem fazer o cruzamento dos dados, mas nem todos. Magalhães diz que alguns gestores não têm capacidade de processamento de dados e dependem do pedido de informações para os órgãos que divulgaram os dados, que nem sempre dão conta de atender a demanda.

Algumas áreas de alguns ministérios têm essa pesquisa, mas não é algo disponível nem o público em geral nem para a academia. Às vezes você tem na universidade pessoas que têm essa competência, normalmente nos departamentos de estatística. Se você pegar os departamentos de economia, de sociologia, eles não têm pessoas especializadas que possam trabalhar esses microdados de forma autêntica. Normalmente, depende de alguém que faça isso para poder desenvolver seu estudo.
Mário Magalhães, especialista em políticas públicas e gestão governamental

Continua após a publicidade

Os próximos passos

Hoje existe a Secretaria de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas e Assuntos Econômicos. É uma pasta do Ministério do Planejamento e Orçamento cujo objetivo é avaliar os gastos com políticas públicas e como ela está se comportando — de todos os assuntos, não só relacionados ao trabalho. Para Barbosa Filho, uma avaliação sistemática ajuda a resolver os problemas que as políticas podem ter ao longo do tempo.

A regra é que as políticas públicas deveriam ser avaliadas sempre. Barbosa Filho diz que deveria ser normal uma política pública ser descontinuada caso ela não tenha os efeitos desejados, mas não é isso que acontece na prática. Ele cita a desoneração da folha de pagamento, criada em 2011, e que até hoje continua existindo, mesmo com dados que mostram que ela não trouxe o impacto desejado. Para ele, descontinuar uma política pode significar uma derrota para o político que a criou, dificultando o processo.

As pesquisas domiciliares e cadastros administrativos deveriam conversar mais. Magalhães afirma que isso ajudaria a ter um retrato ainda mais fiel do mercado de trabalho brasileiro. Existem pessoas com vínculo formal e que atuam como autônomas, e as informações ficam em base de dados diferentes. Isso dificulta ter uma visão geral.

Quando você vai fazer um diagnóstico de mercado de trabalho, você tem pessoas que transitam de uma atividade de autônomo para uma atividade de emprego, e, às vezes, tem pessoas que fazem os dois ao mesmo tempo. Você tem um emprego, mas também é autônomo.
Mário Magalhães, especialista em políticas públicas e gestão governamental

O salário-desemprego é uma política pública passiva que funciona. Magalhães destaca que é preciso avançar nas ativas, como na qualificação profissional e melhora na remuneração da mão de obra. Houve evoluções no ensino técnico, o que ajuda a melhorar a qualificação profissional.

Continua após a publicidade

Outro lado

Procurado pelo UOL, o Ministério do Trabalho e Emprego não se manifestou até a publicação desta reportagem.

A Secretaria de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas e Assuntos Econômicos foi criada em 2019. Ela faz parte do Ministério de Planejamento e Orçamento e tem como objetivo usar "os melhores e mais rigorosos instrumentos disponíveis atualmente para avaliar se o gasto com uma determinada política pública é alto demais, insuficiente ou adequado", segundo o órgão.

Algumas políticas de emprego já foram avaliadas pela secretaria: Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), em 2021, e o seguro-desemprego, em 2019. A secretaria disponibiliza um documento em que aponta tudo o que foi avaliado na política pública e dá o direcionamento necessário para aprimoramento.

Deixe seu comentário

Só para assinantes