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A caçada internacional ao brasileiro que virou mergulhador do tráfico

O navio de carga Transpacific, da Libéria, estava prestes a atracar no porto de Antália, na Turquia, quando oficiais da alfândega viram um veleiro se aproximando. Havia apenas uma pessoa a bordo. Ela usava traje de mergulhador.

Os oficiais viram pacotes flutuando entre o navio e o veleiro e, ao se aproximarem, avistaram apenas o salto do mergulhador. Oito pacotes com 183 kg de cocaína foram apreendidos.

Como o mergulhador não foi pego em flagrante, os policiais decidiram ir até o local onde o veleiro havia sido alugado. Lá, descobriram que o mergulhador era brasileiro: Lucas Vieira Donati, hoje com 37 anos.

A polícia turca identificou o passaporte de Donati, mas ele já havia deixado o país.

O caso acima ocorreu em 13 de outubro de 2022 e foi a primeira ponta solta de um esquema que entrou na mira da DEA, a agência antidrogas norte-americana, e da Polícia Federal brasileira.

A PF descobriu que Donati prestava serviços de mergulhador profissional a quem lhe pagasse e não tinha nenhuma filiação a facções criminosas.

Caixa de mar de navio, onde droga é acoplada
Caixa de mar de navio, onde droga é acoplada Imagem: Polícia Federal

A função dele era acoplar pacotes com cocaína na caixa de mar, que fica no fundo dos navios de carga, viajar até o destino e, lá, realizar um novo mergulho para retirar a droga.

A cocaína que saía do Brasil rumo à Europa e à África viajava debaixo do navio, sem o consentimento da tripulação, o que evitava pagamento de propina e reduzia os custos para o tráfico internacional.

Era a profissão dele. Ele ia com um barco até determinado ponto, usava um propulsor debaixo d'água para chegar até o navio de carga e, lá, colocava a droga na caixa de mar dos navios.
Eugênio Ricca superintendente da PF do Espírito Santo

Donati foi condenado no último dia 24 de janeiro a nove anos de prisão em regime fechado.

Lucas Vieira Donati
Lucas Vieira Donati Imagem: Reprodução

Salário de R$ 1.500 e viagens constantes

A Polícia Federal começou a investigar a atuação de Donati no tráfico de drogas após receber informações de agências internacionais sobre a operação.

Ele era cadastrado desde 2011 no Sistema de Aquaviários como mergulhador profissional marítimo, que opera com ar comprimido de nível 3, permitindo mergulhos mais profundos que 40 metros.

Entre maio de 2019 e janeiro de 2022, ele teve vínculo empregatício como mergulhador de uma empresa de engenharia, com salário mensal de R$ 1.505.

Donati afirmou à 1ª Vara da Justiça Federal de Rio Grande (RS) que recebia R$ 10 mil por mês prestando serviços como mergulhador profissional.

Ele também afirmou ser sócio de uma empresa de fabricação de tijolos ecológicos no Espírito Santo. A existência dessa empresa, porém, nunca foi documentada.

Donati é descrito por conhecidos como um homem apaixonado por trilhas, acampamentos e futebol, além de ser um pai atencioso.

Ele fez ao menos três viagens a Portugal entre novembro de 2021 e o fim de 2022. A duração das estadias variava de 15 a 30 dias.

Além das viagens frequentes incompatíveis com a renda, chamou a atenção dos investigadores ele ter um carro avaliado em R$ 178 mil.

À Justiça Donati justificou seu estilo de vida com informações que não deveriam ser reveladas à sua noiva: ele disse que participava no exterior de eventos de moda íntima masculina e fazia programas como acompanhante.

Afirmou receber em moeda estrangeira pelos serviços.

À medida que a investigação avançava, a PF recebeu informações da DEA que indicavam a presença de Donati no Marrocos entre 9 e 22 de fevereiro de 2023.

Ele permaneceu brevemente em Casablanca e foi para uma "casa de férias" na cidade costeira de Sidi Rahal, acompanhado de cinco homens divididos em dois carros alugados.

Ação feita pela PF e Marinha do Brasil no porto de Rio Grande (RS)
Ação feita pela PF e Marinha do Brasil no porto de Rio Grande (RS) Imagem: Polícia Federal/Divulgação

A movimentação em Rio Grande (RS)

Em 25 de março de 2023, Donati alugou um Jeep Renegade no aeroporto de Porto Alegre e foi até Rio Grande (RS), a 320 quilômetros da capital do estado.

No dia seguinte, ele foi ao shopping Pelotas e comprou cinco rastreadores AirTags na loja da Apple. Pagou R$ 1.510 por esses produtos.

Ele estava acompanhado de Gercy Izaias Mendes Júnior. A movimentação da dupla foi flagrada pelas câmeras de monitoramento do shopping.

Mendes Júnior teria prestado auxílios "operacional e logístico" para aquela ação do mergulhador, custeando hospedagem e a compra das AirTags, segundo o MPF (Ministério Público Federal).

Mendes Júnior, um flamenguista fanático, afirmava que costumava seguir o clube do coração. Assim, assistiu a uma partida na Vila Belmiro, em Santos, e a outra no Equador, quando a equipe chegou à final da Libertadores em 2022.

Ficou lá 15 dias, alegando que em um "bate e volta" as passagens ficariam mais caras. As duas viagens em apoio ao Flamengo ocorreram para cidades com portos.

Uma agente da Polícia Federal afirmou que, após receber uma informação de que um mergulhador que atuaria no tráfico estava em Rio Grande, localizou o hotel e passou a monitorá-lo.

Durante o processo, conseguiu ver Donati buscando Mendes Júnior na rodoviária da cidade.

Nos dias 26 e 27 daquele mês, a agente também observou que os dois fizeram visitas frequentes a Max William Gonçalves de Almeida Solano, que já era suspeito de ser traficante de drogas.

Em 20 de março, Solano havia sido abordado pela PRF (Polícia Rodoviária Federal) no quilômetro 47 da BR-392, rodovia que liga as regiões central e noroeste do RS ao Porto de Rio Grande.

Os agentes encontraram com ele três cilindros de ar comprimido e um compressor de ar respirável. Os equipamentos seriam utilizados no mergulho, segundo o MPF.

Ainda segundo a Promotoria, um imóvel utilizado pelo grupo em Rio Grande foi alugado naquele mesmo mês por Solano.

A investigação ainda apontou um agravante: o CPF cedido por Donati e Mendes Júnior na loja da Apple, em Pelotas, era o do pai de Solano.

Material apreendido na casa de Lucas Donati
Material apreendido na casa de Lucas Donati Imagem: Lucas Donati/Reprodução/PF

Rastreadores na cocaína e fuga

Donati, Mendes Júnior e Solano sumiram no dia 28 de março, o que levantou suspeitas de que o serviço havia sido feito. Um dia depois, uma inspeção nos navios atracados foi feita pela PF, com apoio da Marinha.

No casco do Pearl Eternity, que tinha como destino Setúbal, em Portugal, havia 159 tabletes de cocaína, acondicionados em cinco bolsas estanques, escondidas por um mergulhador na caixa de mar.

No mesmo local, havia cinco rastreadores da Apple, um para cada bolsa.

A investigação constatou que os rastreadores foram comprados pelo grupo no shopping Pelotas. Um segundo policial federal afirmou que as AirTags tinham sido habilitadas por outra pessoa, moradora do Espírito Santo, onde Donati vivia.

Dois números de telefone vinculados aos rastreadores eram ligados ao mergulhador. O primeiro estava no aparelho apreendido com ele meses depois, quando foi preso.

O segundo tinha o DDI da Turquia e estava associado a uma conta de WhatsApp utilizada no mesmo período em que ele esteve no país.

Novamente, Donati escapou. No mesmo dia da localização da droga, ele já havia entregado o carro alugado no aeroporto de Porto Alegre.

Até que, em 10 de maio de 2023, a PF deflagrou a Operação Diver, cujo principal alvo era Donati.

Ele foi detido no aeroporto internacional de Guarulhos (SP) prestes a embarcar para Durban, na África do Sul.

O mergulhador levava eletrônicos de alto valor e dinheiro em moeda estrangeira.

A polícia afirmou ter localizado na casa dele, no Espírito Santo, R$ 66,6 mil, 34,2 mil euros, US$ 2.800, 195 liras turcas, 140 pesos e 1.050 dirhams marroquinos.

Carro de Lucas Donati apreendido pela Polícia Federal
Carro de Lucas Donati apreendido pela Polícia Federal Imagem: Polícia Federal

Também foram encontrados um carro avaliado em R$ 178 mil, uma moto e duas scooters subaquáticas — equipamentos utilizados para impulsionar mergulhos.

Com base na investigação, o MPF apresentou a denúncia em 7 de agosto de 2023 e, em janeiro de 2024, a 1ª Vara da Justiça Federal de Rio Grande o condenou a 9 anos e 11 meses de prisão em regime fechado.

A expressiva quantidade de substância entorpecente apreendida, a presença de rastreadores nas bolsas nas quais a droga estava acondicionada e, sobretudo, o fato de que navio se destinava a Portugal, tornam indiscutível a transnacionalidade do crime.
Adérito Martins Nogueira Júnior juiz

O advogado de Donati, Felipe Souza, disse que já recorreu da decisão que condenou seu cliente.

Ele afirmou à reportagem que as provas que constam no processo "são exclusivamente indiciárias e incapazes de atestar a culpa" por parte do mergulhador.

A defesa de Donati afirmou à Justiça que ele esteve em Rio Grande porque queria conhecer a praia do Cassino.

Já a defesa de Mendes Júnior pediu a nulidade dos elementos que basearam a denúncia afirmando que não seguiram o acordo de cooperação jurídica internacional.

Os advogados de Solano sustentaram que os cilindros seriam usados para auxiliar a avó dele, que tinha insuficiência respiratória, e que o imóvel alugado seria para manter a avó até que ela se recuperasse.

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