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Idoso é condenado a 15 anos por assalto que ocorreu a 800 km de onde estava

O aposentado Gerardo Rodrigues da Silva, 65, é vítima de erros sucessivos da investigação e do processo judicial que o mantém na cadeia por um crime que não cometeu, segundo apuração do UOL.

Ele está preso no Maranhão desde setembro de 2021, condenado a 15 anos em regime fechado por um crime ocorrido a quase 800 quilômetros de onde ele provou estar na ocasião.

O tipo de assalto que o colocou atrás das grades é conhecido como "sapatinho", um roubo comum em cidades pequenas do interior.

Nele, os assaltantes amarram bombas caseiras no corpo do gerente de um banco para obrigá-lo a entregar dinheiro à quadrilha. Feito o serviço, desamarram os explosivos.

O UOL conversou sobre o caso com cinco especialistas, entre eles advogados, desembargadores, defensores e promotores.

Há consenso nesse grupo que a investigação tem "aberrações jurídicas", como provas de inocência ignoradas pela polícia e pelo Judiciário.

Segundo o inquérito, Gerardo é colocado na cena do crime devido ao parentesco com um dos assaltantes e por ter um número de telefone com DDD 011, o código de São Paulo - ele morou 44 anos na cidade.

Isso levou a polícia a confundi-lo com o assaltante Marcos de Oliveira Silva, o Paulista, apontado como líder da quadrilha que tentou aplicar um "sapatinho" numa agência do Banco do Brasil em Codó, no Maranhão, em 16 de novembro de 2020.

Gerardo disse e apresentou provas de que, nessa data, estava em Fortaleza (CE). Cearense, ele havia voltado a viver no seu estado natal no início daquele ano.

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Essas são algumas das falhas apontadas pela defesa na investigação e no processo judicial:

  • A polícia usou uma foto da CNH de Gerardo emitida em 2003, 17 anos antes do crime, para o reconhecimento fotográfico;
  • De acordo com juristas, o reconhecimento nas audiências de instrução e julgamento, que ocorreram durante a pandemia, também foi ilegal;
Assaltante Marcos de Oliveira Silva, vulgo Paulista (esq.), foto de 2003 de Gerardo utilizada para reconhecimento (dir.) e foto atual de Gerardo (abaixo)
Assaltante Marcos de Oliveira Silva, vulgo Paulista (esq.), foto de 2003 de Gerardo utilizada para reconhecimento (dir.) e foto atual de Gerardo (abaixo) Imagem: Arquivo pessoal
  • Francisco Lopes Justino, apelidado de Chico Justino e réu confesso do crime, afirmou que conheceu Gerardo apenas na prisão;
  • Sete pessoas testemunharam à Justiça terem visto Gerardo em Fortaleza na data do crime em Codó;
  • Ofício do banco Santander comprova que Gerardo, usando biometria cadastrada, fez dois saques em Fortaleza no dia do crime;
Ofício do Banco Santander mostra que Gerardo efetuou um saque, com biometria, no dia do assalto de Codó (MA), em Fortaleza (CE)
Ofício do Banco Santander mostra que Gerardo efetuou um saque, com biometria, no dia do assalto de Codó (MA), em Fortaleza (CE) Imagem: Arquivo pessoal
  • Gerardo afirma que a polícia colheu seu primeiro depoimento cinco meses depois de ele já ter sido preso;
  • O acusado alega que, durante o interrogatório, a polícia cometeu "tortura psicológica";
  • Gerardo também afirma que, sem óculos, não pôde ler seu interrogatório impresso. Sem presença da defesa durante a sessão, afirma que ninguém leu o documento para ele;
  • Ele diz que não confessou nenhum crime.
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Para o sistema judiciário do Maranhão, os saques bancários com biometria são insuficientes para comprovar a inocência de Gerardo.

A defesa de Gerardo diz que, com uma busca no Google, localizou o verdadeiro Paulista, que morreu em junho de 2022, num hospital de Vitória da Conquista (BA), após uma suposta troca de tiros com PMs.

Ele chegou a integrar a lista dos bandidos mais procurados do Ceará.

Marcos de Oliveira Silva, o verdadeiro Paulista, acusado de crimes similares ao 'sapatinho' de Codó (MA)
Marcos de Oliveira Silva, o verdadeiro Paulista, acusado de crimes similares ao 'sapatinho' de Codó (MA) Imagem: Arquivo pessoal

O UOL procurou desde o dia 26 de setembro o Tribunal de Justiça, Ministério Público, a Secretaria de Segurança Pública e as polícias civil e militar do Maranhão, mas não teve retorno.

A Vara Especial de Crimes Organizados afirmou, em nota, que "não vê utilidade, ou mesmo interesse público, na concessão de entrevista jornalística por parte dos seus magistrados, notadamente em razão da sentença já estar lançada".

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Um solto, outro preso

Chico Justino tinha hérnia de hiato diafragmática. Gerardo é diabético. As defesas de ambos relataram as doenças à Justiça do Maranhão.

A prisão preventiva do réu confesso do "sapatinho" de Codó foi convertida em domiciliar em 17 de agosto de 2022.

Já a sentença de Gerardo foi mantida pelo mesmo Tribunal de Justiça. A pena dele é de 15 anos, 11 meses e 114 dias de prisão.

Além de Paulista e Justino, os outros integrantes da quadrilha eram Claudemir Ferreira da Silva, vulgo Neguim, e Antonio Soares da Silva, o Marquês.

Eles morreram em confronto com a PM durante a tentativa de fuga do assalto em Codó - o roubo foi frustrado, e a quadrilha tentou escapar rumo ao Piauí.

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Marquês é primo de segundo grau de Gerardo Rodrigues da Silva. Foi na lista de contatos do celular usado por ele que a polícia chegou a Gerardo, que tinha um número com código de aérea de São Paulo.

A polícia entendeu que ele seria o Paulista por causa dessa informação.

Segundo reconhecimento de Gerardo, feito lado a lado com réu confesso Chico Justino, vestidos como presidiários e via chamada de vídeo
Segundo reconhecimento de Gerardo, feito lado a lado com réu confesso Chico Justino, vestidos como presidiários e via chamada de vídeo Imagem: Arquivo pessoal

Em liberdade, Chico Justino foi acusado de comandar um assalto a banco em setembro de 2023, em Viseu, na divisa entre o Pará e o Maranhão.

Em junho do ano seguinte, ele foi morto numa suposta troca de tiros com policiais em Goiás.

O processo no TJ-MA aguarda há um ano pelo julgamento de apelação. Pela demora, os advogados pediram um habeas corpus, que já foi negado, e outro no STJ (Superior Tribunal de Justiça), que não tem prazo para ser julgado.

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As advogadas de Gerardo, Camila Bouza e Evelyn Massetti, afirmaram ao UOL, em nota, que o caso é um "clássico erro do Judiciário, evidenciando a inafastável ilegalidade na utilização de reconhecimento fotográfico como única base para a condenação de pessoas no Brasil e a resistência dos tribunais em seguir a jurisprudência do STJ".

"Que sejam tomadas medidas efetivas para o controle técnico das investigações policiais, evitando que novos erros judiciários como esse ocorram", completaram Bouza e Massetti na nota.

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