Prisão abala mito de generais como tutores do país, diz estudioso de golpes
A prisão de um general de quatro estrelas em investigação de golpe, inédita na atual democracia brasileira, abala a imagem que o Comando do Exército sempre teve de si mesmo como "superior ao poder civil", diz o historiador Carlos Fico.
O inquérito que levou o general Braga Netto à prisão preventiva neste sábado (14) é, para Fico, uma ação difícil para uma sociedade que sempre esteve sob ameaça de violência por militares que se acham, de forma equivocada, "tutores do país".
Ele vê um sinal positivo em "mostrar que os militares não são intocáveis". Mas um freio definitivo neste senso de poder militar total ainda está muito distante na visão do historiador.
Para ele, só uma mudança no artigo 142 da Constituição, que "os militares interpretam equivocadamente como garantia de intervenção", teria um efeito mais duradouro.
Carlos Fico é professor de História do Brasil na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e estuda há mais de 30 anos as ditaduras militares brasileiras. É uma das maiores referências no assunto, em especial no golpe de 1964.
O historiador lança em 2025 "Utopia Autoritária Brasileira", pela editora Planeta, que diz ser o último livro de sua carreira. É um apanhado de todas as intervenções militares da nossa República. Não faltou trabalho: "Fiquei três anos escrevendo", diz.
Leia a entrevista abaixo:
UOL - Como a prisão de Braga Netto pode ser vista na história do Brasil e de como o país trata seus militares golpistas?
Carlos Fico - Nenhum militar de patente mais alta jamais foi preso por tentativa de golpe, com exceção do marechal Hermes da Fonseca em 1922, por tentativa de depor Epitácio Pessoa. Mas o Brasil não era uma democracia. A prisão do Braga Netto já estava de certa forma "precificada" desde a delação do Mauro Cid e os indícios muito eloquentes de sua participação na tentativa de golpe. Mas isso nunca tinha acontecido na atual democracia.
Você está terminando um livro que se chama "Utopia Autoritária Brasileira". De onde vem essa utopia?
O livro é uma história de todos os golpes militares do Brasil, desde a Proclamação da República. Mostro que essa movimentação golpista dos militares não é novidade, pelo contrário. Essa utopia tem a ver com a suposição dos militares de que eles são superiores e melhores que os políticos e os civis. Por isso eles se dão ao direito de intervir na democracia, quando quiserem, por meio da ruptura das instituições.
Os militares interpretam equivocadamente, que têm essa garantia constitucional de intervenção. Hoje enxergam isso no artigo 142. Mas isso existe desde sempre, em todas as Constituições brasileiras, desde o artigo 14 do livro de 1891.
Antes havia o Poder Moderador, o direito de zelar pelos demais poderes, dado ao Imperador. Quando veio a República, os militares passaram a achar que esse direito de tutores do país era deles.
Por que se atribuíam isso?
Isso vem desde a Guerra do Paraguai, na década de 1860, que foi um conflito muito difícil, em que os militares brasileiros se sacrificaram de verdade. Eles voltaram vitoriosos e demandando um reconhecimento que entendiam que o Império não dava.
Isso levou a uma série de crises militares que levou à Proclamação da República, que não deixa de ser um golpe militar, e que inaugura dois governos de ditadura.
E, por outro lado, de onde vem o medo da sociedade deste poder que eles se dão?
Essas ações golpistas se fundamentam numa coisa muito clara, de que a gente às vezes se esquece, que é a violência da história brasileira. É o fato de que eles têm as armas, e se a maioria dos militares quiserem fazer uma coisa, vão fazer.
O que impede isso nas democracias consolidadas é algo sutil e simbólico: a proeminência do poder civil e o respeito que os militares delas têm por esse poder.
Nossa história tem muitas rupturas baseadas em ações armadas e violentas que terminam com impunidade. Os militares continuaram fazendo isso e deixando a sociedade acuada.
Após o fim da última ditadura não houve punição alguma, e os crimes foram muito graves e, para piorar, os presidentes civis mantiveram uma relação de cuidado excessivo.
É preciso mudar a redação do artigo 142. Mas eu até entendo a cautela do atual governo, que teve uma vitória apertada. Uma mudança depende da própria sociedade, porque é preciso ter um governo politicamente forte e um Congresso não tão conservador.
Mas a prisão de Braga Netto mostra que o mito dos militares intocáveis está abalado na sociedade?
Acho que foi uma ação muito bem conduzida até agora pela Polícia Federal. Claro que falta o indiciamento, a denúncia e o julgamento. Mas tem essa importância de mostrar que os militares não são intocáveis e que o lugar de golpista é na cadeia. Tem um ineditismo e esperamos que permaneça como lição.
Você vê as notícias deste sábado como um freio nesta utopia autoritária ou mais como uma evidência de que ela continua?
Por enquanto é mais uma evidência. Porque o que precisaria ser feito mesmo é mudar o artigo 142. Enquanto ele existir, vai haver essa interpretação equivocada. Nós sabemos que o artigo não dá esse poder a eles, o STF sabe, até a Câmara sabe. Mas é essencial fazer esse gesto.
Não dá para ignorar que um eventual julgamento e uma prisão dos golpistas são sinais positivos para a sociedade de que os militares não são intocáveis. Mas eu sou mais pessimista quanto a essa solução mais definitiva de uma emenda no artigo.
Entre estes tantos golpes que você estudou, por que o de 2022 não deu certo? E como a prisão de hoje ajuda a entender isso?
É difícil saber, só no futuro vamos entender de verdade. Existe a informação de que a maioria dos oficiais do Alto Comando não concordou com a iniciativa golpista.
Mas é uma coisa complicada, porque se você não concorda, é porque sabe que existe um plano. E se você sabe, a pergunta que fica é: por que você não denunciou?
Já não há dúvida de que existiu uma tentativa de golpe. Agora precisamos saber se essa denúncia não aconteceu por motivação democrática ou pragmática.
A PF diz que Braga Netto entregou dinheiro em caixas de vinho para os "kids pretos" como parte do golpe. O que isso diz sobre o funcionamento subterrâneo do poder militar?
O planejamento de um golpe é sempre uma coisa encoberta, sigilosa. São planos mirabolantes, que frequentemente os civis ridicularizam se não derem certos. Mas, quando um golpe é bem sucedido, ninguém se lembra que começou como uma coisa exótica, amalucada.
Todo golpe no Brasil começa com uma ação ousada, atrevida, porque precisa deste fator inusitado —afinal vai se depor um presidente.
Como os militares se protegem historicamente em casos de golpes fracassados? E como você vê os movimentos agora?
Isso depende de cada caso. O que vemos hoje é que o Ministro da Defesa [José Múcio] e o Comandante do Exército [Tomás Paiva] tentam "separar o CPF do CNPJ". Ou seja: identificar separadamente quem agiu para caracterizar que o Exército não estaria envolvido.
É uma estratégia, mas ainda não conseguimos saber se foi uma iniciativa tão isolada. O número de militares envolvidos é muito grande, e alguns estavam no topo do poder, no Planalto.
Vamos ver se essa versão se sustenta. No caso do Braga Netto eu imagino que não haverá reação negativa das Forças Armadas, porque minha impressão é de que já estava precificado.
Mas dizer que Braga Netto, General Heleno, Mauro Cid e outros agiram isoladamente, e não como instituição, tenho cautela em relação a isso.
Até porque o que acontece em todos os golpes, que deram certo e errado, é sempre essa uma iniciativa pontual, que causa espanto, e eventualmente há uma adesão.
E aí voltamos à questão de o Alto Comando não ter denunciado, tendo este histórico de que os golpes funcionam se alastrando desta forma.
Exatamente. Esse é o aspecto que eu acho mais grave: o indício de que o Alto Comando sabia do planejamento golpista. Para a nossa sorte, a maioria dos membros não concordou, mas, para o nosso azar, não houve denúncia.
Se essas pessoas souberam e não falaram, deveriam ter sido presas ou denunciadas. Essa prevaricação é importante e infelizmente não está no radar. Mas, do ponto de vista histórico, indica uma perpetuação do golpismo.
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