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'Minha formação é esquisita': o passado de Galípolo, novo presidente do BC

Em maio de 2021, o então ex-presidente Lula se preparava para lançar sua candidatura ao terceiro mandato. Faltava um ano e meio para as eleições e ele precisava de interlocução no inóspito mercado financeiro.

Amigo de longa data, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo sugeriu um economista de 39 anos de quem era mentor.

Gabriel Galípolo tinha feito graduação e mestrado em economia na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Era na época presidente do Banco Fator, sediado nos arredores da Faria Lima e voltado a operações de fusão e aquisição, concessões e privatizações.

Era pandemia, então Lula pediu uma reunião por Zoom. Além de Galípolo, participariam economistas e petistas próximos.

O encontro foi marcado. Lula queria saber se seus governos (2003-2010) tinham sido bons para o mercado financeiro.

"Ganharam dinheiro comigo?", perguntou Lula.

"Foram muito bons", respondeu Galípolo. "O mercado não é contra nem a favor. Ele quer grana."

No final do dia, Galípolo soube que o ex-presidente tinha gostado da conversa e queria saber se ele topava novas rodadas. "Sim", respondeu o economista, contanto que fossem mantidas em discrição.

Começava ali uma promissora relação em que o então jovem banqueiro se tornaria um elo entre o universo petista e o mercado financeiro.

"Muitas vezes o ruído é maior que a distância efetiva. Existem lados antagônicos e contradições de interesses, mas é possível sentar à mesa com um nível de animosidade menor se conseguirmos colocar a divergência em termos mais urbanos", afirmou Galípolo ao UOL.

Me sinto como um tradutor.
Gabriel Galípolo, presidente do Banco Central

Um ano depois daquela primeira videochamada, a presidente do PT telefonou para Galípolo. Gleisi Hoffmann queria que ele a acompanhasse em um jantar do Grupo Esfera, com banqueiros como André Esteves e empresários como Flávio Rocha.

No encontro, Galípolo defendeu o diálogo e reforçou a constatação de que a independência do Banco Central já era realidade.

Gleisi inclusive anunciou que, se eleito, Lula manteria Roberto Campos Neto até o final do mandato.

A presença do banqueiro acalmou os homens da grana, mas os petistas não ficaram tão confortáveis assim. Nos dias seguintes, uma disparada de telefonemas e notas em jornais sinalizaram que sua chegada não viria sem atritos.

Galípolo procurou se desviar de disputas para poder seguir. Era uma iniciação política.

A campanha de Lula em 2022, com Gleisi e Mercadante como coordenadores, foi seu primeiro grande teste.

Até chegar à presidência do Banco Central, Galípolo passou por vários outros antes de assumir uma das funções mais sensíveis da República.

O UOL ouviu mais de 15 interlocutores, de ministros a agentes do mercado financeiro, para traçar o perfil e a trajetória do economista que chegou ao comando da autoridade monetária nacional.

19.dez.2024 - Gabriel Galípolo participa de uma entrevista coletiva na sede do Banco Central do Brasil em Brasília
19.dez.2024 - Gabriel Galípolo participa de uma entrevista coletiva na sede do Banco Central do Brasil em Brasília Imagem: Adriano Machado/Reuters

Um trem para o futuro

Depois do mestrado na PUC, Galípolo assumiu uma posição na Secretaria dos Transportes Metropolitanos no governo de José Serra (PSDB) em São Paulo, em 2007.

Em 2008, foi para a Secretaria da Fazenda cuidar de concessões e PPPs (parcerias público-privadas). Fundou uma consultoria no ano seguinte justamente para estruturar projetos nessa área.

Após a atuação junto aos tucanos, em 2010, o petista Aloizio Mercadante o convidou para ajudar a formular o programa de governo de sua campanha para o governo paulista.

Galípolo elaborou projetos de trens intercidades, que ligassem o interior à capital. Mercadante não se elegeu governador, mas a ideia não foi perdida.

Presidido por Mercadante, o BNDES agora financia o trem Campinas-São Paulo, idealizado 15 anos atrás pelo agora presidente do Banco Central e previsto para 2031.

Galípolo manteve a consultoria até 2022, conciliando ainda o trabalho no Banco Fator (2017 a 2022), atividades como pesquisador no Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais) e até no conselho da Fiesp (Federação da Indústria do Estado de São Paulo).

Para ele, esse ecletismo o gabarita para o papel de tradutor. "Minha formação é meio esquisita. Passei por lugares muito diferentes na carreira", diz. "Tenho ferramental para falar as duas línguas."

O consultor André Perfeito estudou economia na PUC com Galípolo. A turma era formada também por Guilherme Santos Mello, hoje secretário de Política Econômica da Fazenda, e André Roncaglia, diretor-executivo do FMI (Fundo Monetário Internacional).

"A gente aprendia várias escolas de pensamento econômico e, de todos nós, Galípolo sempre mostrou habilidade política de saber lidar com o ambiente em volta", lembrou.

A turma fazia grupos de estudo com Belluzzo, economista de referência da esquerda petista.

"Gabriel vai ter que lidar com a complexidade", constatou Belluzzo, em entrevista ao UOL.

"Vai ter que levar em conta as convenções do mercado, que acabam determinando o que acontece no mundo das transações da vida."

Gabriel Galípolo e Luiz Gonzaga Belluzzo
Gabriel Galípolo e Luiz Gonzaga Belluzzo Imagem: Divulgação

Para Belluzzo, há um "fenômeno de classe no mercado financeiro". "[Os agentes] pensam igual, não têm capacidade de questionar nada. E hoje em dia o mercado financeiro tem muito poder —até para contestar o poder daquele que foi eleito pelo povo."

Em 2017, Galípolo e Belluzzo publicaram o primeiro livro juntos, "Manda Quem Pode, Obedece Quem Tem Prejuízo" (editora Contracorrente), em que analisam a crise econômica de 2015 e questionam ideias do mercado financeiro, como a de elevar a taxa básica de juros (a Selic) para conter a inflação.

"A despeito das expectativas, o 'ajuste' de 2015, ao invés de convencer o 'mercado' das virtudes da austeridade monetária e fiscal, proporcionou um aprofundamento dos flagelos que se desejava combater: inflação, recessão e déficits públicos", escreveram.

Com referências a clássicos da economia (como John Maynard Keynes) e da filosofia (como Immanuel Kant), os autores observam com acidez os movimentos financistas.

"Embuçados nas máscaras da boa ciência, os sabichões atribuem a crise ao abandono do sagrado tripé e à adoção da nova matriz macroeconômica. Seria uma fraude intelectual, se lhes sobrasse inteligência para tanto. Os arquitetos da desgraça são adoradores da 'velha meretriz macroeconômica', cujo culto levou o mundo à tragédia financeira de 2008, ainda não debelada", sustentaram.

Gabriel Galípolo e Lula em vídeo em que o petista apresentou o agora presidente Banco Central ao público
Gabriel Galípolo e Lula em vídeo em que o petista apresentou o agora presidente Banco Central ao público Imagem: Reprodução

Histórico e desconfiança

A desconfiança do mercado financeiro com a gestão de Galípolo no BC vem, em parte, dessas posições.

"Claro que fica sempre uma preocupação, por conta dos posicionamentos históricos do Galípolo", diz Silvio Campos Neto, economista e sócio da Tendências Consultoria —sem parentesco com Roberto Campos Neto.

"Ele chegou a criticar o BC pelo aumento de juros em momentos em que [o patamar elevado da taxa] era óbvio, como em 2015, em meio à crise da pressão inflacionária ainda no mandato Dilma 2."

A iminência da posse de Galípolo na presidência do BC, no final de 2024, foi marcada por uma turbulência que levou o câmbio a recordes históricos, injeção de dólares no mercado e uma embicada da Selic para cima —com uma alta de 1 ponto e o aviso do BC de mais duas altas consecutivas do mesmo porte

O problema não é com Galípolo, segundo Silvio Campos Neto.

"Em termos de posicionamento do Galípolo, o mercado está muito mais confiante", disse.

"Mas o ambiente do governo e do partido do governo complicam muito o trabalho dele. Transmite a mensagem de que ele está lá para cumprir um papel determinado, o que não parece ser o caso."

Em outras palavras, o temor era ver uma repetição da gestão de Alexandre Tombini no BC (2011 a 2016), nos anos Dilma.

A condução da autoridade monetária naquele período foi considerada pouco efetiva e muito suscetível à pressão do Executivo.

A Selic chegou ao valor mais baixo, 7,25% ao ano, mas a inflação permaneceu boa parte do tempo acima da meta, numa média de 7%.

Lula, no entanto, gosta de lembrar que em seus dois mandatos anteriores o presidente do BC foi Henrique Meirelles.

Em conversa com o UOL, Meirelles atestou sua independência no cargo. "Lula de fato não participou de decisão nenhuma", afirmou.

Com uma exceção. "Uma única vez ele me fez um pedido. Ele achava que, para atingir as metas de crescimento com o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento], lançado naquela época [em 2007], seria necessário baixar os juros", lembrou Meirelles.

"Mas ele próprio disse, 'Meirelles, nunca te pedi nada'. E eu concordei. Respondi que o melhor para o país e para o governo seria tomarmos a decisão tecnicamente adequada, e foi isso que foi feito."

O ex-presidente do BC e ex-ministro da Fazenda (governo Temer) considera "normal" a desconfiança do mercado com Galípolo, mas ele próprio não vê ameaça à autonomia do BC.

"As decisões que tomou até agora [como diretor de Política Monetária do BC] têm sido tecnicamente adequadas, seguindo a maioria do Copom [Comitê de Política Monetária], e espera-se que continue nessa linha", notou.

Gabriel Galípolo, novo presidente do Banco Central
Gabriel Galípolo, novo presidente do Banco Central Imagem: Adriano Machado/Reuters

Gargalhadas com Lira

Após a vitória de Lula, em 2022, Galípolo foi anunciado como número 2 de Fernando Haddad no Ministério da Fazenda. O economista se jogou na política ainda antes da posse.

A equipe econômica negociava com o Congresso a aprovação da PEC da Transição, emenda que permitiu aumentar o valor do Bolsa Família e organizar as contas públicas para o início do mandato de Lula, em 2023.

Tenso com a negociação com o PT, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), desconfiava de qualquer interlocutor do novo governo.
Nas incontáveis reuniões na residência oficial, Lira, que não é conhecido pelo bom humor, encontrou no economista alguém com quem descontrair.

Com uma piada aqui, uma tirada ali, e muitos jantares depois, Galípolo ganhou sua confiança. Os acordos foram cumpridos, Lula tomou posse e Galípolo se tornou "habitué" na mansão do presidente da Câmara.

Tempos depois, quando Haddad criticou os superpoderes dos deputados em uma entrevista, sobrou para Galípolo manter o diálogo vivo com Lira.

Ele colocava as divergências em pratos limpos e se dispunha a ouvir o técnico legislativo que Lira quisesse para debater projetos e chegar a denominadores comuns entre Executivo e Legislativo.

19.dez.2024 - Gabriel Galípolo e Roberto Campos Neto e Campos Neto se cumprimentam em coletiva de imprensa no Banco Central
19.dez.2024 - Gabriel Galípolo e Roberto Campos Neto e Campos Neto se cumprimentam em coletiva de imprensa no Banco Central Imagem: Gabriela Biló/Folhapress

A chegada ao BC

Em meados de 2023, Lula voltou seus canhões contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, questionando sua motivação para a manutenção dos juros altos no Brasil —a Selic estava em 13,75%, então a maior taxa de juros reais do mundo.

Indicado por Bolsonaro em 2019, Campos Neto deu pistas de suas inclinações políticas.

Nas eleições de 2022, saiu para votar com a camisa da seleção brasileira e permaneceu em um grupo de WhatsApp de ministros do ex-presidente, mesmo após a posse de Lula.

O petista dizia que a decisão do Copom de manter a taxa naquele patamar desacelerava a economia sem necessidade, já que a inflação estava dentro da meta.

Haddad tentava alguma conciliação. Em agosto, duas diretorias do BC ficaram vagas, e ele queria indicar nomes que ajudassem na costura. Sondou uma pessoa, mas não funcionou. Então, a ficha caiu.

Em fevereiro, Haddad tinha ido à Índia para uma reunião do G20. Encontrou Campos Neto por lá e, em dado momento, o presidente do BC comentou que via em Galípolo habilidade para a função que ele próprio desempenhava.

Como o mandato de Campos Neto se estenderia por mais dois anos, Haddad escutou, mas não fez nada. Meses depois, porém, lembrou-se da conversa. Foi então a Lula, que não achou má ideia.

17.mai.2023 - O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, acompanhado de Gabriel Galípolo, participa de audiência pública conjunta das Comissões de Desenvolvimento Econômico, Finanças e Fiscalização da Câmara dos Deputados
17.mai.2023 - O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, acompanhado de Gabriel Galípolo, participa de audiência pública conjunta das Comissões de Desenvolvimento Econômico, Finanças e Fiscalização da Câmara dos Deputados Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

No meio-tempo, Galípolo ainda teria condições de influenciar o Copom.

O tradutor aceitou.

Cerca de 40 minutos depois de a notícia sobre a indicação sair, Roberto Campos Neto mandou-lhe uma mensagem de boas-vindas. "Você vai gostar, é um bom lugar para se trabalhar", disse.

Era o começo do fim do reinado de Campos Neto, que nos meses seguintes teria uma sucessão de embates com Galípolo no vaivém da taxa básica de juros (leia mais na coluna de Thaís Bilenky).

O presidente do BC se mostrou cordial, mas deu uma canseira no futuro sucessor.

Não o levou a encontros com banqueiros e empresários, não o indicou à presidência interina do banco no primeiro ano inteiro quando se ausentava, não o apresentou formalmente em eventos internacionais —mesmo com Galípolo já aprovado para a presidência do banco.

Até a escolha do carro funcional destinado a Galípolo não foi das mais generosas, repararam os servidores.

Essa roupa suja jamais foi lavada em público. Mas, no que mais importava ao governo, a jogada funcionou.

"Foi um acerto ter encaminhado Galípolo como diretor no ano passado, preparou o terreno para que ele pudesse assumir a presidência do Banco Central", avaliou Haddad ao UOL.

"Galípolo reúne as condições técnicas e políticas que o tornam muito preparado para o cargo."

Da esquerda para a direita, o novo diretor do Banco Central Gilneu Vivan, o presidente recém-empossado da autarquia, Gabriel Galípolo, e os também novos diretores Izabela Correa e Nilton David
Da esquerda para a direita, o novo diretor do Banco Central Gilneu Vivan, o presidente recém-empossado da autarquia, Gabriel Galípolo, e os também novos diretores Izabela Correa e Nilton David Imagem: Reprodução/Instagram

Incansável no beija-mão

Em outubro de 2024, Galípolo foi aprovado presidente do BC após sabatina no Senado. Recebeu somente cinco votos contrários —o segundo melhor placar da história.

Dos 65 votos favoráveis, um era de Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

"Votei a favor, acreditando na tecnicidade e imparcialidade dele, até porque vai ser o presidente do BC no próximo governo Bolsonaro", elogiou, provocando, o filho do ex-presidente ao UOL.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não se lembra de sabatina tão bem encaminhada, em qualquer seara, em toda a sua gestão à frente da Casa, nos últimos quatro anos.

"Galípolo realmente foi um 'case' importante de maturidade política do Senado, independentemente de posições ideológicas e partidárias", disse à reportagem na Conferência do Lide em Londres, em outubro.

Galípolo conquistou a classe política, inclusive a oposição, com boa prosa, argumentos e uma paciência de Jó.

Antes da sabatina, o economista procurou os 81 senadores, um por um, para uma "visita de cortesia", como se diz em Brasília.

Mais de 50 senadores o receberam pessoalmente no gabinete. Com os que estavam fora, em campanha para as eleições municipais, Galípolo fez reuniões por Zoom, WhatsApp ou telefone.

Nesse périplo, foi se preparando para o tipo de questionamento que viria a encontrar em plenário.

Na oposição radical, os senadores pediam a ele interlocução com o governo para pautas como a limitação dos poderes dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Galípolo entendeu o "approach" como uma oportunidade. Respondia que jamais permitiria que a autonomia do BC fosse violada, da mesma forma que jamais extrapolaria suas atribuições com assuntos alheios a elas.

Já na base aliada, a pergunta recorrente era por que aumentar juros quando crescimento, emprego e renda vão bem.

O tradutor respondia: o BC é o chato da festa. Quando está todo mundo solto na pista, acende a luz, abaixa o som e controla a bebida.

Faz isso para evitar que alguém dê vexame.

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