Antes de Lula tomar posse como presidente, Janja prometeu que não seria uma primeira-dama convencional. Transcorridos quase dois anos de governo, ela tem cumprido a promessa.
Na recente edição do G20 Social, protagonizou diferentes polêmicas — do xingamento ao dono da rede social X, Elon Musk ("fuck you"), à afirmação de que o homem que morreu ao atentar contra o STF (Supremo Tribunal Federal) era um "bestão".
A despeito das gafes que comete em eventos públicos, Janja aciona ministros e outros servidores do governo diretamente e dá sugestões sobre como devem trabalhar.
Alguns acatam suas recomendações; outros, por considerar que devem obediência apenas a Lula e seus chefes diretos, não.
Nos corredores de Brasília, há quem se refira à primeira-dama, maliciosamente, como "primeira-ministra" — e diga, no mesmo tom irônico, que este governo não é o Lula 3, Janja 1.
Assim, ela é admirada e criticada — no governo e no PT — em medidas parecidas, como o UOL mostra no podcast "Janja", série em cinco episódios que estreia dia 26, no UOL, no canal de YouTube do UOL Prime e em todas as plataformas de podcast. O primeiro episódio já está disponível para assinantes UOL.
Aliados e rivais
O podcast é resultado de seis meses de apuração e mais de 30 entrevistas em Brasília, São Paulo e Curitiba.
A série mostra que aliados de Janja consideram positivo seu comportamento, o que ajuda Lula a governar melhor. Estão nesse time ministros indicados por ela, como Anielle Franco, da Igualdade Racial.
Não é que ela pede para ajudar. Ela toma a iniciativa e faz Anielle Franco
Um exemplo disso seria a recomendação de Janja para que, durante a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, Lula não decretasse a GLO (Garantia da Lei e da Ordem), ao contrário do que defendiam antigos aliados do presidente.
Emídio de Souza, deputado estadual pelo PT e ex-tesoureiro do partido, era um deles.
"Eu fui uma das pessoas que falei para decretar a GLO. Ela disse 'de jeito nenhum, não vamos trazer os militares de volta'", disse Souza ao UOL.
Entre os que não acatam os pedidos de Janja, a opinião é de que ela ultrapassa os limites do título — "primeira-dama" não é cargo.
Também dizem que a atuação dela prejudica a imagem de Lula. Quem compõe esse grupo não critica Janja publicamente.
Juntos no sindicato
A série derruba algumas versões sobre o relacionamento de Janja com Lula, como a de que começaram a namorar na prisão.
Segundo pessoas próximas, Lula passou com Janja a última noite antes de se entregar à Polícia Federal no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo (SP), em 7 de abril de 2018.
Eles dormiram em um colchão improvisado no subsolo do prédio e tomaram café da manhã no dia seguinte.
Os dois só voltariam a dormir juntos em 8 de novembro de 2019, desta vez em uma cama, no apartamento de Wilson Ramos Filho, o Xixo, fundador do PT no Paraná.
Foi para lá que o casal se deslocou quando Lula deixou a carceragem da Polícia Federal em Curitiba, após 581 dias preso.
Tomaram juntos o primeiro café da manhã da liberdade — pão francês, queijo e presunto, que Xixo levou para o casal ao amanhecer.
Impacto nas redes
Como Lula é um homem assumidamente analógico — ele não tem celular e não vê redes sociais —, Janja é quem conta para ele o que está repercutindo no X e no Instagram, onde ela é assídua.
A primeira-dama construiu entre admiradores a reputação de especialista em comunicação.
A Janja é uma pessoa de rede social, de engajamento. Tem um tino de comunicação que nós não temos Cida Gonçalves ministra das Mulheres, pasta em que Janja exerce forte influência.
A secretária executiva do ministério, Maria Helena Guarezi, foi indicação de Janja. As duas trabalharam juntas em Itaipu.
"Ela tem visão ampla de comunicação, facilidade, pega rápido", diz Guarezi.
Uma das mostras de que sabe causar impacto nas redes foi a foto postada no Instagram beijando a testa de Anielle Franco, após a notícia de que a ministra teria sido importunada sexualmente pelo colega Silvio Almeida, dos Direitos Humanos. Ele nega a acusação.
Ali, Janja assumiu a dianteira de Lula, que ainda não havia se pronunciado sobre o caso, e selou o destino de Almeida, que foi demitido na sequência.
Disputa por controle
Janja tenta como nenhuma outra primeira-dama controlar a Secretaria de Comunicação do governo, respaldada pela confiança de quem a vê como hábil no ramo.
O titular da pasta, o ministro Paulo Pimenta, foi chamado à atenção publicamente por Janja por mexer no celular enquanto Lula discursava, em maio de 2024, no Rio Grande do Sul.
Ele, que havia sido designado ministro extraordinário de reconstrução do estado durante as enchentes que assolaram a região, guardou o celular no ato.
Janja pôs na Secretaria de Comunicação Brunna Rosa, profissional de sua confiança, que controla os grupos de WhatsApp e Telegram do governo. Embora seja subordinada a Pimenta, ela responde diretamente a Janja.
Apesar de mandar nas redes institucionais da Presidência, a primeira-dama não consegue mandar no Instagram, no TikTok e no YouTube do presidente.
Esses espaços são de responsabilidade de Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial de Lula, com quem a primeira-dama não se dá.
Os dois eram amigos durante a vigília Lula Livre, mas começaram a se desentender durante a campanha à Presidência e hoje praticamente não se falam, embora parte do trabalho dele consista em fotografá-la e filmá-la.
Janja começou a se indispor com a equipe de comunicação do PT assim que Lula saiu da prisão.
Ela não aceitava seguir instruções sobre a maneira como deveria aparecer nas redes sociais, por exemplo — a campanha queria evitar que o comportamento espontâneo dela servisse de munição para bolsonaristas.
Isso ocorreu em diferentes ocasiões, como revela o podcast.
Quem tentou estabelecer um papel para Janja na campanha se deu muito mal Edinho Silva prefeito de Araraquara pelo PT e coordenador da comunicação da campanha de Lula
Durante a campanha, a jornalista Nicole Briones, que alimentava as redes sociais de Lula, foi afastada do cargo, grávida do primeiro filho, após se desentender com Janja.
Procurados pela reportagem, Ricardo Stuckert, Brunna Rosa e Nicole Briones não responderam aos pedidos de entrevista.
Além de Ricardo Stuckert, Janja fala apenas o necessário com o sociólogo Marco Aurélio Ribeiro de Santana, o Marcola, chefe de gabinete de Lula, e com o ministro Rui Costa, da Casa Civil.
Cargos vetados
Rui Costa foi o algoz de Janja na primeira vez em que ela tentou, oficialmente, ser mais do que a primeira-dama do Brasil.
Em 2023, logo após o início do mandato de Lula, ela anunciou que assumiria o cargo de secretária de assuntos estratégicos da Presidência da República.
Mesmo não sendo remunerada para a função, a indicação foi barrada por Rui Costa, que apontou configuração de nepotismo.
Na época, Janja perguntou a aliados se teria de "rasgar a certidão de casamento" para ter um cargo.
Na segunda vez em que tentou assumir um trabalho oficial, no começo deste ano, ela teve o desejo negado pelo próprio Lula.
A história é contada no podcast pela primeira vez.
Em 17 de janeiro de 2024, uma assessora de Janja consultou a CGU, a Controladoria-Geral da União, sobre um cargo que a primeira-dama havia assumido meses antes na OEI (Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Como não tem cargo oficial no governo, Janja não dispõe de uma equipe própria, mas é assessorada por quatro profissionais lotados no gabinete pessoal do presidente da República, além de um ajudante de ordens.
As cinco pessoas foram "designadas informalmente pelo presidente para trabalhar diretamente com ela", como se lê na consulta enviada à CGU a que UOL teve acesso.
A assessoria de Janja queria saber se, nas viagens nacionais e internacionais que faria trabalhando para a OEI, ela poderia ser acompanhada pela equipe, e quem deveria arcar com essas despesas.
Na consulta, a assessoria anexou o contrato de trabalho que deveria ser assinado entre Janja e a OEI.
Conflito de interesses
O UOL apurou que a CGU identificou problemas na maneira como Janja queria exercer a função.
Técnicos recomendaram que o contrato não fosse assinado, pois configuraria conflito de interesse, visto que a primeira-dama tem poder de influenciar decisões em qualquer ministério.
Ninguém no órgão, no entanto, queria dar a má notícia a Janja, com medo de contrariá-la. Por isso, em vez de responder à consulta, a CGU levou a questão a Lula.
A OEI é um organismo internacional que, no Brasil, tem projetos apoiados pelo Ministério da Educação.
Segundo o UOL apurou, ao saber da possibilidade de a primeira-dama viajar com a equipe da Presidência, Lula determinou que o contrato não fosse assinado e o assunto, esquecido.
Depois disso, Janja nunca mais mencionou seu trabalho na OEI.
Ao UOL a OEI afirmou por meio da assessoria de imprensa que Janja recebeu o título de coordenadora da Rede, mas "acabou não atuando" na função.
Afirmou também que ela nunca foi remunerada, mas não respondeu à pergunta sobre os motivos que a levaram a não seguir com o trabalho.
Procuradas pelo UOL, as assessorias de imprensa de Lula, de Janja e da CGU não quiseram comentar o caso.
'Afã de ajudar'
Para a cientista política Larissa Peixoto Gomes, doutora pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), "infelizmente, Janja poderia ter um cargo se não fosse casada com Lula".
"Digo infelizmente porque ela é uma pessoa capacitada", afirma Gomes, que é especialista em gênero e pesquisadora da Universidade de Edimburgo, no Reino Unido.
Entendo o afã de Janja querer ajudar. Mas ela não pode fazer nada, porque seria nepotismo. Nesse caso, a mulher tem que se apagar um pouco. É o momento de falar: 'Vou escrever um livro, cuidar dos cachorros. Daqui a quatro anos será minha vez' Larissa Peixoto Gomes pesquisadora
Ela cita como exemplo o caso de Joachim Sauer, esposo de Angela Merkel, chanceler da Alemanha entre 2005 e 2021. Sauer é químico quântico e professor universitário.
"Ele continuou com o trabalho acadêmico, não ia em nada, não aparecia."
Peixoto afirma, no entanto, que no Brasil esse comportamento poderia soar estranho. "Iam perguntar por que a Janja não acompanha o Lula."
Articuladora de governo
O fato de não ter cargo não impede Janja de ter poder político no governo do marido. Além de Anielle Franco, Margareth Menezes, na Cultura, também é indicação dela.
Janja ainda emplacou o número dois da Cultura, o secretário executivo Márcio Tavares dos Santos.
Também tem relação boa com Nísia Trindade (Saúde), para quem a primeira-dama tem papel no governo.
"Ela tem atenção especial pela pauta das mulheres e das crianças", afirma Nísia Trindade. Em setembro, Janja recebeu do governo a medalha de mérito Oswaldo Cruz na categoria ouro em reconhecimento a ações na área de saúde pública.
A escolha gerou desconforto entre petistas e colegas de Esplanada, que dizem não ver como a ação possa contribuir para a imagem do governo — argumentam que faz o contrário —, mas o presidente não viu problema.
No dia, Janja foi a primeira a ser laureada pelo marido e pela ministra, e comemorou a honraria abraçando e tirando selfies com o boneco do Zé Gotinha.
Questionado, o ministério disse que Janja promoveu lives sobre vacinação e participa "ativamente" de discussões da pasta.
Holofotes
Além de tratar da influência de Janja no governo, o podcast do UOL refaz a trajetória dela desde os tempos de militante do PT em Curitiba.
Antes da fama, Janja atuou como servidora de Itaipu por 18 anos. Entrou em 2003, primeiro ano de Lula, por indicação — não fez concurso público.
Também por indicação trabalhou como assessora em gabinetes parlamentares de petistas. Embora seja filiada ao PT desde os 18 anos, não era reconhecida como militante de destaque fora do Paraná.
Ao UOL uma petista com histórico nos quadros feministas do partido disse que só ouviu falar de Janja quando ela foi apresentada oficialmente como namorada de Lula.
A primeira-dama — que não quis dar entrevista para o podcast — defende-se de insinuações sobre a discrição de suas ações pregressas afirmando que é uma profissional de bastidor.
Talvez no passado. Hoje, ela tem todos os holofotes voltados para si.
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