Ao menos 32% dos conselheiros de todos os tribunais de contas do Brasil têm políticos como parentes, mostra levantamento inédito feito pelo UOL.
São pais, filhos, irmãos, sobrinhos, maridos e esposas com cargos vitalícios e salários altos, ocupando vagas que dão poder, dinheiro e prestígio.
Desses, 19 governadores ou ex-ocupantes do cargo têm parentes em tribunais de contas. Pelo menos seis ministros de Lula têm esposas e irmãos nessas cortes.
O UOL analisou o histórico e o parentesco de conselheiros dos 33 tribunais de contas do país —estaduais, municipais e da União.
De 225 autoridades que estão na ativa, 74 têm parentes que trabalham ou atuaram na política.
As cortes são responsáveis por fiscalizar e julgar as contas da União, de governos, prefeituras e até do Judiciário.
Podem mandar suspender licitações, recomendar término de contratos, impor multas e ressarcimento aos cofres públicos.
A presença de parentes de políticos nesses cargos poderia configurar conflito de interesses para quem fiscaliza.
Procurados, os tribunais de contas afirmaram, em sua maioria, ter mecanismos internos que permitem às autoridades não atuarem se houver alguma questão que comprometa a isenção no julgamento.
O UOL entrou em contato também com a associação dos membros dos tribunais de Conta, a Atricon, que respondeu que não existe proibição para que parentes de políticos virem conselheiros.
Leia as respostas completas aqui.

A presença de famílias na política vem dos tempos coloniais, afirma o professor Ricardo Costa de Oliveira, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), especialista em sociologia política.
Embora sejam tribunais de fiscalização, as cortes de contas são órgãos políticos, compostos por ex-senadores, ex-deputados e ex-vereadores, por exemplo.
O levantamento do UOL considerou o parentesco dos conselheiros, mas nem todos foram colocados nos cargos pelos políticos aos quais estão vinculados.
Muitas vezes são as Assembleias Legislativas estaduais que assumem como delas as nomeações de parentes de políticos.
Onélia Santana, mulher do ministro da Educação, Camilo Santana, chegou ao TCE-CE em dezembro de 2024 por indicação da própria Alece (Assembleia Legislativa do Ceará).
Camilo foi senador e governador do estado em dois mandatos.
Renata Calheiros, esposa do ministro dos Transportes, Renan Filho, disputou com cinco candidatos para assumir uma vaga de conselheira no TCE-AL e venceu.
Outros ministros de Lula têm esposas que também são conselheiras.

Em AL e SE, maioria das vagas é ocupada por parente
Os tribunais de contas estaduais são compostos por sete conselheiros.
Em Alagoas e Sergipe, cinco autoridades têm parentes na política. No Piauí e em Pernambuco, quatro.
Na cúpula da corte de Alagoas estão os administradores:
- Otávio Lessa, irmão do ex-governador do estado e atual vice, Ronaldo Lessa (PDT) --nomeado por ele em 2002;
- Renata Calheiros, esposa do ministro dos Transportes e ex-governador, Renan Filho (MDB) --tomou posse em 2022.
Renan Filho afirmou ao UOL que Renata Calheiros "foi uma indicação da Assembleia Legislativa de Alagoas". "Possui formação, currículo e experiência em gestão compatíveis para o cargo", disse.
Os Requião e a suspeita de nepotismo
Em 2008, o então governador do Paraná, Roberto Requião (atualmente no Mobiliza), nomeou o irmão para o Tribunal de Contas estadual.
No ano seguinte, uma decisão judicial afastou o conselheiro por suspeita de nepotismo.
As nomeações de parentes têm sido questionadas na Justiça, mas em regra eles não são impedidos de se tornarem conselheiros. Uma das justificativas, por exemplo, é que a escolha respeitou os trâmites legais e se trata de uma escolha da Assembleia Legislativa.
Maurício Requião passou 13 anos fora da corte, até que o STJ (Superior Tribunal de Justiça) autorizou seu retorno em 2022.
Agora, o ex-deputado federal quer receber salários e benefícios relativos ao período de afastamento, e o TCE concordou.
Em fevereiro, o ministro do Supremo Gilmar Mendes havia barrado o pagamento, mas reviu a decisão, em março, e autorizou a indenização dos retroativos —R$ 12 milhões.
Requião afirmou ao UOL que a indicação de seu irmão para o TCE foi decisão da Assembleia Legislativa.
Dez dos 19 familiares de governadores ou ex-ocupantes do cargo tomaram posse a partir de 2021.
O advogado Daniel Brandão, sobrinho do governador do Maranhão, Carlos Brandão (PSB), chegou ao TCE há cerca de dois anos.
A nomeação foi suspensa pela Justiça por suspeita de nepotismo, mas autorizada logo em seguida.
No fim do ano passado, duas entidades de classe saíram em defesa do sobrinho do governador, que tem 39 anos e é o atual presidente da corte.
"A investidura do conselheiro Daniel Itapary Brandão foi realizada em plena conformidade com os ditames constitucionais e legais aplicáveis, respeitando os procedimentos previstos na Constituição Federal, na Constituição Estadual e na legislação específica", afirmaram a Atricon (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil) e o CNPTC (Conselho Nacional de Presidentes dos Tribunais de Contas).

Dentista, filha de ex-governador e conselheira
A primeira mulher a se tornar conselheira do Tribunal de Contas de Goiás é a dentista Carla Santillo, filha do ex-governador e ex-senador Henrique Santillo.
Ela tomou posse em 2006, no plenário que leva o nome do pai, morto em 2002, quando era conselheiro da corte.
Carla Santillo cumpriu menos de um mandato como deputada estadual, antes de integrar o TCE.
Familiares e aliados
A sede do Tribunal de Contas dos municípios do Pará, em Belém, também leva o nome de um político: Palácio Jader Barbalho.
No tribunal trabalha desde 2008 uma irmã do senador, a conselheira Mara Barbalho. Não é a única integrante da família em órgão de controle externo.
Ex-secretária municipal e ex-voluntária de programas do governo paraense, a advogada Daniela Barbalho é conselheira no Tribunal de Contas do Estado há dois anos.
Ela é casada com o governador Helder Barbalho (MDB), filho de Jader.
Os dois tribunais paraenses têm em seus quadros um ex-assessor de Jader e a esposa de um ex-secretário de Helder.
Indicado pela Câmara dos Deputados, o ministro do TCU Jhonatan de Jesus é médico e filho do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR).
Jhonatan foi eleito deputado federal quatro vezes antes de ingressar no tribunal na cadeira da ex-ministra Ana Arraes —a avó do prefeito do Recife, João Campos (PSB).
País afora, as cortes de contas também abrigam aliados da classe política, além de parentes.
No Rio, o governador Cláudio Castro (PL) indicou o ex-deputado estadual Márcio Pacheco (ex-PSC), de quem foi chefe de gabinete, ao Tribunal de Contas do Estado.
Atual presidente da corte fluminense, o conselheiro é irmão do deputado estadual Fred Pacheco (PMN).
Quem é eleito sem parentes e se torna bem-sucedido, analisa o professor Ricardo Costa de Oliveira, em algum momento dará origem à sua própria família política.
Para ele, a perpetuação desse sistema freia o avanço do país.
"Limita tudo. A gente observa o nosso déficit de cidadania, educação, saúde. O Brasil segue com essa lógica há décadas."
O professor Cláudio Couto, da FGV (Fundação Getúlio Vargas), vê patrimonialismo na nomeação de parentes de políticos.
Segundo ele, "o problema maior" pode ocorrer se a nomeação comprometer a atuação dos tribunais de contas como órgãos de controle.
"Você está tornando as posições públicas, o acesso a recursos públicos e desempenho de funções de controle por órgãos de estado um assunto de família, uma questão de ordem privada", afirmou, referindo-se à possibilidade de que conselheiros se debrucem sobre casos de parentes políticos.
"É muito grave. Se dá prejuízo você pagar penduricalho para quem está nesses cargos, imagina o quanto não custa uma fiscalização leniente."