O empresário francês Alex Allard vem gastando milhões para transformar o Cidade Matarazzo em um dos maiores empreendimentos de luxo do Brasil.
Mas o complexo voltado para ultrarricos no bairro Bela Vista, em São Paulo, que hoje já abriga o único hotel seis estrelas do país, tem uma interrogação em meio às altas despesas.
Allard acumula dívidas milionárias com dezenas de fornecedores, que vão desde o vendedor de prego e saco de cimento a empresas de tecnologia.
E mesmo sem conseguir pagar a quem deve, sua empresa manteve gastos como fretamento de aeronave, festa e pagamento por despesas de consultoria do filho, apurou o UOL.
Ocupando uma área de 30 mil m² a um quarteirão da avenida Paulista, o Cidade Matarazzo já conta com o clube Soho House, uma casa de cultura, um centro de negócios e seis restaurantes.
Obras em curso preparam prédios do antigo complexo de hospital e maternidade para abrigar também um centro de experiência gastronômica, lojas de moda e design, um mercado, um templo de meditação e uma sala de concertos.
É nessas obras que a BM Varejo, empresa que administra o empreendimento e é controlada pelo empresário, tem tido dificuldades de caixa.
Até 14 de abril, havia 263 cobranças de dívidas em cartórios de protesto contra a BM e firmas controladas por ela, que somavam R$ 17,7 milhões —sem considerar multas, juros e correção.
As dívidas começaram em dezembro de 2023. A mais barata protestada é de R$ 2,50 (distribuidora de água). A mais cara, de R$ 3.018.012,62 (empresa de tecnologia da informação).
A conta inclui conectores elétricos, tubos de aço, aluguel de andaime e caminhão-pipa, material de construção, serviços de impermeabilização, remoção de lixo, formas para concreto, cabos de iluminação, entre outros itens.
Funcionários das empresas credoras contam que receberam em dia na fase inicial do empreendimento. Por isso, entregaram novos produtos e serviços antes que o pagamento caísse na conta.
A situação de Allard com seus sócios vem se deteriorando, e ele corre o risco de perder os direitos autorais do projeto para um conglomerado chinês.
Sobre os pagamentos, "a BM Varejo informa que está equalizando pagamentos em atraso" e que "a estimativa é de que 95% das operações estejam em atividade até o próximo ano".
Para isso, a assessoria afirma que acionistas já validaram um aumento do capital da empresa, assim como "uma linha de financiamento de R$ 160 milhões". A empresa não divulgou quando isso deve ocorrer.

Os motivos do rombo
Despesas altas em empresas criadas pela BM para bancar novas iniciativas, antes da finalização da reforma dos prédios, estão entre as causas para os problemas financeiros, dizem ao UOL pessoas próximas ao empresário.
Na festa de inauguração da casa de cultura do complexo, quando a dívida com uma loja de pregos chegava ao segundo mês, em setembro do ano passado, convidados caminhavam em meio a formas geométricas de uma projeção artística. Preço da intervenção: mais de R$ 200 mil.
No primeiro semestre de 2024, Allard fretou uma aeronave para buscar em Paris o designer Philippe Starck, que o empresário queria envolver em um segundo projeto, mas ele desistiu de vir. A viagem frustrada custou à BM Varejo pelo menos R$ 400 mil.
Na mesma época, determinou que o empreendimento pagasse uma fatura de despesas de seu filho, Sasha Allard, consultor de investimentos do projeto, por acompanhá-lo em viagens de prospecção de investidores. Preço: R$ 313 mil.
Os gastos com projetos de arquitetura para prédios do complexo e o licenciamento milionário de marcas estrangeiras que Allard deseja ver no empreendimento também entram nessa conta.
Para ter no futuro um restaurante do badalado chef franco-americano Jean-Georges Vongerichten, Allard pagou R$ 1,2 milhão apenas como primeira parcela da taxa de licenciamento de marca.
Pelo menos até o ano passado, a retirada mensal do empresário na BM Varejo era de R$ 500 mil.

Na propaganda oficial, os negócios de Allard são vendidos como uma nova forma de se relacionar com a comunidade.
"Luxo não pode ser apenas luxo. Não existe bom gosto sem respeito à cidade, à cultura, à sociedade, ao patrimônio histórico e ao meio ambiente", promete.
Além do calote em fornecedores, o empreendimento acumula reclamações de vizinhos do entorno da Bela Vista, na região central da capital paulista, conforme mostrou a Folha de S.Paulo.
Por duas semanas, o UOL pediu uma entrevista a Allard.
Primeiro ele informou que não havia agenda disponível. Depois disse que só se manifestaria por escrito, por meio da sua assessoria de imprensa.
A reportagem perguntou por que ele mantém o alto padrão de gastos, apesar das dificuldades em honrar despesas básicas de construção e infraestrutura dos novos prédios.
"A BM Varejo informa que está equalizando pagamentos em atraso para que nenhum fornecedor deixe de receber o valor correspondente aos serviços efetivamente prestados."
"Em referência aos custos das obras, a BM Varejo destaca que, como todo produto de alto luxo, a excelência pela qualidade é um atributo inegociável. Investimentos em matérias-primas de qualidade nos permite gerar produtos com valor agregado para este mercado."
Questionado sobre os gastos com fretamento de aeronave, festa e com o filho, Allard disse que não se manifestaria.
Também não quis falar sobre sua retirada mensal e o gasto com a projeção artística na festa.
"As questões se referem a dados financeiros internos de uma empresa privada e de capital fechado", registrou. Leia mais aqui.

Super App Cidade Matarazzo
Uma das maiores dívidas do empreendimento, de quase R$ 9 milhões, é com duas das maiores empresas brasileiras de tecnologia, as multinacionais CI&T e Stefanini.
Elas foram contratadas para desenvolver um aplicativo que integraria as atividades do complexo em uma única forma de pagamento.
Os pagamentos começaram a atrasar em dezembro de 2023, resultando em uma longa negociação entre o diretor de Tecnologia do Cidade Matarazzo, Vitor Amaral, e representantes das empresas.
A contratante assinou termos de confissão de dívida, mas não conseguiu honrar as parcelas de renegociação.
"O Cesar Gon e o Alex Allard estão tentando se falar (tiveram uns desencontros), e por isso o Alex só pediu para aguardarmos eles conversarem antes de eu enviar a nossa proposta", escreveu Vitor à CI&T em email de 27 de agosto de 2024.
Gon é CEO e fundador da CI&T.
Amaral dizia que o empreendimento dependia de um aporte para regularizar a situação, mas ele nunca chegou.
"Este talvez seja o momento mais difícil que estamos vivendo na história desse projeto, mas estamos confiantes de que o cenário mudará em breve", registrou o diretor em mensagem de 5 de setembro.
No final daquele mês, a CI&T desistiu de esperar por R$ 2 milhões que estavam atrasados e decidiu desmobilizar sua equipe.
"A CI&T não tem função de investidor, financiador ou partícipe do risco do empreendimento e, por isso, explicações de hipóteses de funding do empreendimento não endereçam a situação", escreveu Stanley Rodrigues, vice-presidente financeiro da CI&T.
Neste ano, a postura pró-ativa para resolução das pendências sofreu uma reviravolta.
As empresas de Allard entraram na Justiça para romper contratos, pedir o reembolso de R$ 30 milhões à CI&T e à Stefanini, além de "indenização por prejuízos".
"As empresas foram contratadas para desenvolver um 'super app' com diversas funcionalidades, mas apenas cerca de 10% foram entregues. A companhia se considera credora e reforça que quaisquer cobranças adicionais são indevidas", disse ao UOL a BM Varejo.
O advogado Rafael Schlickmann, que representa a Stefanini, respondeu à manifestação:
"Os serviços contratados foram regularmente prestados e serão devidamente comprovados. Anteriormente ao processo mencionado, a Stefanini já buscava em juízo o recebimento dos valores devidos, inclusive aqueles expressamente confessados em instrumento de confissão de dívida", registrou.
A CI&T não quis se manifestar sobre o caso.

Marco Cidade Matarazzo
As dificuldades de caixa de Allard coincidem com o desgaste de sua relação com seus principais sócios —e hoje controladores— da BM Empreendimentos.
A empresa detém a marca Cidade Matarazzo e é responsável pelo negócio mais rentável do empreendimento, o hotel Rosewood São Paulo.
Desde 2021, ela é controlada pela CTF (Chow Tai Fook), conglomerado da bilionária família Cheng, de Hong Kong, que investiu parte dos R$ 3 bilhões alocados na construção do Cidade Matarazzo.
A CTF contrariou o empresário ao cobrar dele, no fim do ano passado, que abrisse mão dos direitos autorais do projeto.
Allard respondeu indo ao Judiciário para provar que representa a iniciativa e que não aceita entregar os direitos aos sócios.
Essa história começou em 2013, quando a CTF adquiriu 35% da empresa criada por Allard para desenvolver o Cidade Matarazzo como um todo.
O empresário francês perdeu o controle da BM Empreendimentos em 2021, após sucessivos aumentos de capital que não foram acompanhados por Allard.
Uma segunda empresa, a BM Varejo, foi criada para cuidar do restante do projeto Cidade Matarazzo.
Allard buscou constantes empréstimos no mercado para não perder participação na BM Empreendimentos.
Ele recorreu ao Banco Votorantim em 2017. No fim de 2023, pegou um empréstimo do Banco Master.
Hoje, detém 35% do negócio, mas está ameaçado de perder mais uma fatia devido à programada conversão de debêntures (créditos) da empresa em ações.
Com isso, Allard perde ainda mais influência sobre o Rosewood São Paulo.
Ao cobrar dos chineses o lugar de mentor intelectual do projeto, o francês tenta exercer pressão após a última diluição de sua participação na BM Empreendimentos, apostam pessoas próximas ao empresário.
Isso também abre uma brecha para ele receber pelos direitos autorais do Cidade Matarazzo.

Sonhador
A postura agressiva de Allard no mundo dos negócios atrai gente que admira a forma como ele se entrega a projetos.
Até um antigo credor, o empresário e cofundador da Empiricus, Eduardo Elias, vê mérito na história de Allard, visto por ele como um "empresário arrojado".
Elias cobra na Justiça 1,5 milhão de euros do francês, em ação que já teve confissão de dívida e renegociação, mas que empacou novamente com o atraso do pagamento das parcelas.
"Os gênios vivem quebrados. Acho que eles buscam inconscientemente se colocar em situação de distress e desconforto; produzem melhor assim", disse Elias ao UOL no início de abril.
Outra pessoa que já integrou o time de Allard, e pediu anonimato, também o considera bem-intencionado, mas hoje tem pé atrás com o empresário.
"Ele quer realizar o sonho dele a qualquer preço. E a forma como ele faz isso é dúbia. Não dá pra saber se é uma pessoa ingênua, que acha que dinheiro vai cair do céu, ou se é esperta demais", afirma.
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