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Lidia Zuin

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Horror à luz do dia: 'Gótico Nordestino' desafia estereótipos do gênero

Cristhiano Aguiar, autor de "Gótico Nordestino"  - Renato Parada/Divulgação
Cristhiano Aguiar, autor de 'Gótico Nordestino' Imagem: Renato Parada/Divulgação

Colunista do TAB

29/01/2022 04h01

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Nascido em uma família protestante e devota, o escritor paraibano Cristhiano Aguiar cresceu com o entendimento de que milagres podem e devem acontecer. Desde cedo, as fronteiras entre o mundo empírico e o sobrenatural já eram muito porosas para esse autor que teve obra publicada na antologia "Granta - Melhores jovens escritores brasileiros" da Flip, em 2012.

Depois de compartilhar suas vivências enquanto imigrante nordestino em São Paulo no livro "Na outra margem, o Leviatã" (2018), Cristhiano retorna com um livro que o leva de volta às raízes.

Com lançamento previsto para 2 de fevereiro, "Gótico nordestino" será publicado pela Companhia das Letras, sob o selo Alfaguara. Apesar de o título lembrar um recente lançamento da editora Darkside, o escritor já estava com o projeto pronto antes mesmo de Silvia Moreno-Garcia publicar "Gótico Mexicano". Ainda assim, as duas obras se aproximam, trabalhando as tradições da literatura gótica aplicadas ao contexto latino-americano, com referências à cultura pop.

Ao longo dos nove contos, Cristhiano brinca com referências do imaginário popular, ao nomear uma história como "Firestarter", mesmo título de uma obra de Stephen King adaptada para o cinema em 1982. O escritor nos presenteia com um domínio da língua primoroso e envolvente, ao apresentar expressões e costumes específicos de Campina Grande (PB) e região. Nascido e crescido na cidade paraibana, Cristhiano conta que debruçar-se sobre as próprias origens foi importante na construção de "Gótico nordestino".

Como diferentes histórias trazem comentários sociais e políticos, perguntei a Cristhiano se ele considera a classificação "pós-horror" fiel à sua obra. Mais recentemente, alguns críticos propuseram esse termo talvez como forma de superar o estigma que o gênero ganhou, ao longo do tempo. A sugestão é que essa nova leva de livros e filmes se diferencia por ser mais politizada — um argumento incorreto, como explica o autor.

Capa do livro 'Gótico nordestino', de Cristhiano Aguiar (Cia. das Letras) - Divulgação - Divulgação
Capa do livro 'Gótico nordestino', de Cristhiano Aguiar (Cia. das Letras)
Imagem: Divulgação

Apesar de o filme "Midsommar" mostrar a possibilidade de se criar uma história de horror "à luz do dia", Cristhiano lembra de outros títulos, como "O Massacre da Serra Elétrica" (1974), que se passa durante o dia. Já no que diz respeito ao comentário político e social, filmes como "Corra!" ou "Corrente do Mal" só estão atualizando uma tradição que existe desde o livro "Frankenstein" (1818). Cristhiano argumenta que a obra de Mary Shelley é, do começo ao fim, permeada de metáforas sociais e políticas.

Os argumentos de Cristhiano me lembraram um professor que, numa aula, comentou que era impossível imaginar uma história de terror em uma praia nordestina — o cenário foge dos tropos do gênero. Mas o conto "A mulher dos pés molhados" não só é um comentário sobre o turismo no Nordeste como propõe a desconstrução do estereótipo da praia nordestina ensolarada.

Esse mesmo professor argumentava que o Brasil é um país extremamente barroco, não só por conta da obra de Aleijadinho. O termo barroco aqui seria empregado para descrever um país de contrastes, que aplica o chiaroscuro em outros âmbitos. Como a colonização ocorreu no solo, nos corpos e nas mentes, é provável que muitos de nós ainda associem certos gêneros aos europeus ou norte-americanos.

O Brasil tem uma tradição gótica (e nordestina) que remonta desde o primeiro romance nacional. Cristhiano explica que "Úrsula" (1859), escrito pela maranhense Maria Firmina dos Reis, sofreu influência clara do romance gótico do século 18. O mesmo poderia ser dito sobre o primeiro romance de ficção científica brasileiro, "A Rainha do Ignoto" (1899), escrito pela cearense Emília Freitas. Augusto dos Anjos, chamado por muitos de "o poeta da morte", era paraibano. "Ele foi o primeiro poeta por cuja obra eu me fascinei e ele sempre será uma influência em tudo que escrevo", revela Cristhiano.

Com o nascimento de subgêneros fantásticos que se debruçam sobre especificidades da cultura brasileira, como é o caso do amazofuturismo e do sertãopunk, "Gótico nordestino" aproveita esse momento de interesse do público. Cristhiano não acredita que sua obra inaugura o "gótico nordestino" como um subgênero. Ainda assim, o livro tem força suficiente para inspirar novas ondas literárias.

Enquanto Zé do Caixão nos legou o horror cinematográfico, Cristhiano cita os escritores Marcio Benjamin, Bruno Ribeiro, João Martins, Frederico Toscano, Oscar Nestares, Paula Febbe, Santiago Nazarian, Daniel Gruber, Antônio Xerxenesky, além do coletivo Recife Assombrado, como expoentes do horror contemporâneo. A criação da Biblioteca Tênebra, especializada em literatura gótica brasileira, também reforça o interesse pelo gênero no Brasil.

Cristhiano compartilha o desejo de escrever uma novela ou um romance depois de se dedicar por mais de uma década ao formato dos contos. "Há várias ideias rascunhadas, mas nada ainda definido. Mas posso afirmar que o projeto vai caminhar na linha do 'Gótico nordestino' e tem palavras como road movie, horror, viagem, colonização, magia, guerra e paixão como fios condutores."

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL