Para 200 mil brasileiros, olhos da enfermeira foram última janela da vida
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Minha amiga Bárbara Castro, professora do Departamento de Sociologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) me enviou, dias atrás, uma coletânea de ensaios, organizada por ela, com o título "Covid-19 e sociedade".
Num início de ano atropelado, só comecei a ler o e-book no dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 200 mil mortes por coronavírus.
Naquela mesma noite precisei acompanhar, a trabalho, a live do presidente Jair Bolsonaro que, já sabendo dos números, lamentou protocolarmente as mortes e colocou em dúvida se elas tinham sido causadas ou não pelo vírus. "A vida continua", garantiu.
Continua para quem?
Enquanto ouvia o presidente, lembrava de um dos ensaios do livro, sobre humanização e trabalho emocional em equipes de enfermagem durante a pandemia, assinado pela pesquisadora Bárbara Ferrari Brandi. O título era "A última janela da vida".
Embora poética, a chamada dava acesso a um relato duríssimo, mesmo para quem acompanha, como jornalista, as notícias a respeito do morticínio desde março, com um alerta em forma de mantra: "não são números, não são números, não são números..."
Apesar do esforço, existem aspectos na tragédia que acompanhamos todos os dias sobre os quais pouco pensamos —eu, pelo menos. Bárbara Brandi descreve, por exemplo, que os profissionais da saúde são o último elo entre os pacientes internados com covid-19 e o mundo exterior. São, portanto, o único suporte emocional direto disponível em um hospital.
Com um detalhe. Por conta dos riscos de contaminação, este suporte humano tem apenas uma parte do corpo visível. O restante está envolto por equipamentos de proteção facial que cobre e atédistorce a voz dos interlocutores.
Isso significa que, para mais de 200 mil pessoas que não voltaram para suas casas, o olhar dos profissionais de saúde, principalmente o das equipes de enfermagem, a maioria mulheres, foram a última janela para um mundo ao qual não teriam mais acesso. Um mundo onde habitam suas famílias, seus afetos, suas histórias.
Para lidar com essa limitação, a pesquisadora conta que os profissionais de saúde têm se desdobrado para minimizar a sensação de impessoalidade impressa já nas máscaras e face shields. Uma solução é usar fotos sorrindo nos crachás para que os pacientes saibam como são seus rostos por trás da "armadura". Outro recurso é gravar vídeos individuais em aparelhos eletrônicos nas quais se apresentam de cara limpa, sem os equipamentos. Tudo para que os pacientes conheçam a voz e o rosto da pessoa que pode estar com eles em seus últimos momentos.
"Na verdade, temos medo de nos aproximar", admitiu uma técnica de enfermagem de 50 anos durante a pesquisa realizada pela autora entre 30 de abril e 20 de maio.
"O que mais me marca, todos os dias, é olhar pela porta dos quartos e ver tantos idosos sozinhos, aqueles que estão internados tratando cada um a sua doença, que não podem ficar acompanhados. Vejo e sinto na face de cada um a falta de estar com alguém, a insegurança, o medo e tristeza, o sentimento de estarem abandonados", relatou outra enfermeira, de 44 anos.
Na tentativa de minimizar a situação de estresse, um técnico de enfermagem estimulou familiares e amigos a escreverem cartas para os pacientes. O profissional era o responsável por ler as mensagens.
No ensaio, a pesquisadora lembra que a taxa de contágio entre os profissionais de enfermagem é 722% maior do que na população em geral. Pudera: são eles que estão nas trincheiras. E são eles que se sobrecarregam quando maus influenciadores, a começar pelo inquilino do Palácio do Planalto, desdenham a letalidade do vírus, boicotam programas de vacinação por razões políticas, estimulam aglomerações e postam tutoriais de como driblar as restrições sanitárias para poder tomar sorvete em paz no shopping center.
São os profissionais de saúde que, na outra ponta, precisam lidar com a ansiedade de familiares e pacientes que chegam ao hospital e já exigem o tratamento com medicamentos sem eficácia comprovada, vendidos como salvação por autoridades políticas que tiraram habilitação médica pelo Facebook.
Bárbara Brandi lembra que, apesar das homenagens recorrentes aos profissionais de saúde, projetadas até mesmo no Cristo Redentor, o trabalho em um hospital —sobretudo o esforço por um atendimento humanizado — é praticamente invisível. A capa de super-heróis e super-heroínas não cabe em tarefas básicas no dia a dia, a começar pelo transporte público no trajeto casa-trabalho, onde muitas enfermeiras são hostilizadas, agredidas verbalmente e recebem pedidos, gentis ou não, para deixarem vagões do metrô.
É o que a pesquisadora chama de disputa de narrativa: "por um lado, as mulheres fortes, heroínas e linha de frente da guerra contra o coronavírus; por outro, as infectadas que devem manter distância de todos os espaços públicos".
"A luta das trabalhadoras da saúde é também a resistência, melhoria e a defesa do nosso sistema público de saúde", escreve ela.
A busca pela humanização do atendimento à saúde é um trabalho tão imenso quanto distante da nossa vista, apesar dos esforços para não transformar a cobertura num grande relatório estatístico ao fim do dia.
Quanto mais naturalizamos a morte, mais nos desumanizamos. também Lembrar dos esforços de quem, longe do mundo fantasiado das redes, das lives e dos lamentos protocolares, está na luta diária contra a morte e o sofrimento ajuda a recobrar a dimensão humana perdida ao longo da pandemia.
Que as janelas abertas pelos olhos desses profissionais permaneçam abertas e vigilantes. E que ninguém seja esquecido quando tudo isso, um dia, passar.
Em tempo. Quem tiver interesse em ler o ensaio e outros artigos, eles estão disponíveis gratuitamente no site do Ifich, da Unicamp.
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