Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
No mundo pós-covid, trabalhar doente ainda será sinal de profissionalismo?
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Cenas de uma outra vida. No ônibus lotado, ainda sem passar pela catraca, você olha para o fundo e encontra um único assento vago, do lado do corredor.
Sentado com o rosto virado para a janela (fechada), alguém agoniza. Devolve timidamente os cumprimentos automáticos de outras viagens (todo mundo ali se conhece, ninguém se conhece). O olá da pessoa ressoa um "odá".
Ela está fanha. Está visivelmente indisposta. E está prestes a espirrar.
No instante que antecede o segundo fatal, ela busca um objeto de contenção. Não tem lenço de seda ou algodão (e quem tem hoje em dia?), mas papéis higiênicos amassados, já formando uma bola grudenta, tirados de algum lugar da mochila. Que não chegam a tempo ao nariz.
Do motorista ao último passageiro, todos ouvem a explosão súbita de ar e recebem na superfície do corpo os mucos e perdigotos expelidos pela boca, pelo nariz e talvez pela orelha de quem sentou ao fundo querendo simplesmente desaparecer.
O resto é ladainha. Atchim. Saúde. Amém.
Por alguma razão, você permanece ali. Tenta puxar papo, dizer que está tudo bem, deseja melhoras — tudo antes de segurar a mesma barra e apertar o mesmo botão dos que descem no próximo ponto.
Dali a uma semana é a sua vez de demonstrar que a palavra "resiliência" tatuada no antebraço não é modinha, mas proposta de vida.
Uma gripezinha não vai te derrubar, você pensa. Nem que seja para levar o ônibus inteiro, num ciclo já conhecido de socialização da desgraça. Contra tudo e contra todos, você se apresenta para a trincheira em forma de baia no escritório, como soldado disposto ao sacrifício. A firma não pode parar, você dizia, muito antes do slogan que transformou a firma em um país inteiro constrangido por ficar em casa.
Trabalhar no sacrifício durante anos foi sinônimo de valorização. Como era valorizada a iniciativa do atleta que contava orgulhoso na TV que atuou à base de dipirona, não jogou nada, contaminou metade do time e ainda assim virou herói.
Cenas do tipo parecem mais próximas da Idade Média tomada pela peste do que dos protocolos em um mundo impactado pela covid-19. Um mundo que se move à base de álcool em gel, máscaras, distanciamento, medição de temperatura e a cultura, ainda incipiente, da quarentena — aquele isolamento básico quando temos algum sintoma ou voltamos de alguma viagem.
Há mudanças de hábitos forçadas pela pandemia. Como diria o meme, não seria de bom tom que deixem de valer quando a situação melhorar.
(Sim, estou pensando num mundo pós-covid. Sim, estou projetando que sobreviveremos. Sim, este é um texto otimista).
Um passo nessa direção vai ser lembrar que aquele trabalhador ou trabalhadora caindo em pé do nosso lado no ônibus não estava ali por perversão. Se a pessoa estava firme e fraca em direção ao trabalho é porque, do outro lado, alguém botou ao menos três pontos de interrogação na mensagem do WhatsApp quando foi avisado que ela não passava bem. "Mas de novo???".
E então, para evitar constrangimentos, os peões e peoas de toda parte não têm outra opção se não subir no ônibus, como dá, ou no metrô, como podem, botar uma multidão em risco, inclusive pessoas de idade, apresentar o atestado em pessoa, com olheiras e nariz escorrendo, em uma sala fechada com ar condicionado e ouvir "ok, vai pra casa" no 15º espirro seguido de uma brincadeira sem graça do tipo "de hoje não passo". Eu mesmo já fiz muito.
Quem tem o privilégio de conseguir trabalhar de casa nos últimos tempos e não foi alcançado pela covid-19 percebeu que está há mais de um ano sem sintomas de outros resfriados, como os provocados pelo vírus influenza, que até outro dia chamávamos de "gripe comum". Isso provavelmente vai alterar a disposição para ir ao sacrifício em direção ao trabalho ou outros compromissos da próxima vez.
Só que isso não depende do peão. Depende de uma mudança na cultura das corporações. E essa não é uma relação de forças iguais. Existem mais tons de cinza em um "beleza, não precisa vir" do que supõem nossas relações mediadas pela coerção e a desconfiança. Como se a pessoa rouca e fanhosa do outro lado da linha fizesse uma imitação barata da tática do Ferris Bueller, o personagem de Matthew Broderick que finge estar à beira da morte para poder faltar à aula, nadar com a namorada, destruir o carro do melhor amigo e fazer cosplay dos Beatles no desfile da cidade em "Curtindo a Vida Adoidado".
Na vida real, todos escondemos os sintomas e vamos para o sacrifício com medo de sermos substituídos ao menor sinal de fraqueza. Depois é fácil, para o empregador, se referir à faxineira como a agente clandestina do vírus que entrou em sua bela casa. Difícil é entender o medo que a moveu até ali.
A experiência com um vírus mortífero descortinou a cultura da resiliência e demonstrou que ela é também risco de vida. Num país de tantas desigualdades, todos podem adoecer. Mas uns morrem mais que outros. É geralmente o lado que, resumido à força de trabalho, não pode nunca mostrar fraqueza.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.