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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Resumo da semana: nem papa nem Enzo Celulari sabem o que é viver no Brasil

Fotografia do Papa Francisco, líder da Igreja Católica - Getty Images
Fotografia do Papa Francisco, líder da Igreja Católica Imagem: Getty Images

Colunista do TAB

29/05/2021 04h01

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Deve fazer um tempo que o papa Francisco não vem ao Brasil. Visita à paisana, digo, não com as pompas de chefe de Estado que espalha cercadinhos e limita o contato com a multidão de fiéis a tchauzinhos e curtos apertos de mão.

Só isso explica o diagnóstico de que nossa salvação está perdida por excesso de cachaça e déficit de oração. Da missa o santo padre não sabe a metade. Nossa fama é justa, mas está desatualizada.

Não digo que não tenha muita cachaça por aí. A depender da cidade, conforme saímos do chamado centro expandido, falta um pouco de tudo na quebrada. Menos boteco. Mas também não falta igreja.

O dueto boteco-igreja define mais a vida social do brasileiro contemporâneo do que samba e carnaval. Se este ainda nos definisse, não teríamos eleito um presidente ranzinza e abstêmio que odeia nossa maior festa popular. Nem deixado nossa salvação sanitária nas mãos de quem rejeita vacina porque vê pornografia esquerdista até na entrada da Fiocruz.

Não significa que, com o tanto de igreja quadrangular, retangular e outros formatos geométricos, tenha se expandido nossa capacidade de rezar.

Falo por mim. Filho de catequista, lembro que passava um pouco de tudo na minha cabeça, até o que não devia, enquanto repetia mecanicamente as ladainhas decoradas desde criança. Orar mesmo é outra coisa. Isso eu aprendi com Gilberto Gil, e não com algum santo da casa. Quando quero falar com Deus, preciso ficar só, apagar a luz, calar a voz e encontrar a paz.

Só que a paz neste país está solapada.

Por causa de seus demônios, espalhados pela rua e no meio do redemoinho, o Brasil me obriga a beber. Mas também me obriga a rezar. A contragosto. Com todos os meus conflitos com padres, bispos, sacrifícios e remissões de pecados que sequer existem do lado de baixo do Equador. Mas rezo.

Rezo pela salvação. E rezo para que, ao fim dessa passagem, exista realmente um inferno profundo para receber de braços abertos os vendilhões do templo e os degredados filhos de Eva que esqueceram o mandamento máximo e fizeram da vida de todo mundo aqui na Terra um inferno.

Reza e cachaça nunca andaram separados por aqui. Só deixamos de recorrer a um ou a outro devido a oscilações de preço e de consciência.

Se ela é leve, só rezamos.

Se pesa, rezamos antes e bebemos depois.

Não é bonito, eu sei, mas é o que tem pra hoje. Não vai ser o conviva que transformava água em vinho quem vai nos condenar por isso.

Os mistérios da carne são outros 500. Semana passada, por exemplo, pela primeira vez entrei e saí do mercado de mãos vazias. Estava em busca de carne para churrasco. Mas não tive coragem de deixar ali o dinheiro que eles exigiram para liberar a peça. Aquilo era um sequestro a R$ 90 o quilo.

Escândalo mesmo só aconteceu quando um rapaz chamado Enzo Celulari deparou com o mesmo fenômeno e, aparentemente, viu razões para celebrar. Nas suas redes, lançou (e correu a apagar) a pergunta Tostines: a inflação da carne nos levou à diminuição do consumo ou o baixo consumo vem da nossa consciência inflacionada?

Com um ensopado pé de galinha na boca e a saudade da carne de primeira, como falamos em casa, na cabeça, fiquei em dúvida sobre o que os jovens empreendedores andam tomando durante as aulas sobre a lei da oferta e da procura.

A única conclusão possível é que nem o Enzo nem papa têm a menor ideia do que seja viver no Brasil.

O que falta ali não é reza nem cachaça. É bilhete único.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL