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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quando atleta fala dos limites, é da gente que está falando

Ex-jogador Adriano se solidariza com Simone Biles nos Jogos Olímpicos: "sei o que está passando" - Reprodução/Instagram @adrianoimperador
Ex-jogador Adriano se solidariza com Simone Biles nos Jogos Olímpicos: "sei o que está passando" Imagem: Reprodução/Instagram @adrianoimperador

Colunista do UOL

31/07/2021 04h00

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Sinal dos tempos. As Olimpíadas de 2020 acontecem em 2021. Por causa da pandemia do coronavírus que explodiu no ano anterior. E que ainda não acabou.

Por mais que os organizadores se esforcem, um megaevento do tipo não acontece em uma bolha de pistas, campos, quadras ou piscinas, mas com todas as estruturas fincadas em um mundo que adoece e faz meio mundo adoecer.

Simone Biles, maior atleta da ginástica olímpica de sua geração, desistiu das medalhas praticamente certas para cuidar de sua saúde mental.

O que ouvimos após a decisão é o que ouvimos desde o início da pandemia. Ou desde sempre. O show não pode parar. A economia, idem. Não sejamos fracos, vulneráveis, improdutivos.

É preciso encarar o desafio como homens, não maricas. É preciso não ter medo. E morrer pela causa ou a fé, se necessário.

Alguns, os fracos, cairão. É da vida, eles dizem. É a lei dos mais fortes. Dos que têm histórico de atleta e ainda têm fôlego para mirar o topo —geralmente, uma miragem. Mirem-se no exemplo daqueles atletas que matam e morrem por seus patrocinadores, donos de direitos de transmissão, expectativa dos pais, pressão dos treinadores.

As histórias de superação dos Jogos Olímpicos inspiram e comovem, é verdade. Mas elas contam só uma parte da história.

Diferentemente dos filmes, há um dia após a vitória. Ou da derrota. Um dia depois do dia em que se desiste de desistir. É lá que os acertos de conta vêm de uma vez.

O esporte produz imagens que pautam o imaginário.

Desde criança, somos educados a venerar o esforço de quem quase morreu para cruzar a linha de chegada. E tentamos aplicar aquele esforço para as metas mais pessoais. Mesmo quando mal podemos ficar em pé, batemos no peito para dizer que não é uma gripezinha que vai nos derrubar. Valorizamos quem se apresenta ao trabalho pontualmente tossindo, espirrando, com dores em todo o corpo. E esquecemos o lastro de vírus e outros patógenos que o campeão deixou no caminho. A coletividade? Conta outra. O esporte dos vitoriosos na vida é um esporte individual.

Se alguém adoecer por nossa conta e risco, fazer o quê? Lamentamos, mas não somos coveiros. Todo mundo vai morrer um dia.

Nos bons tempos, dizem os atônitos, ninguém se escorava nas lutas contra a opressão para reivindicar que tudo bem não estar bem. Que o cuidado de si precede a missão e a honra.

Vejam os jogadores de futebol. Que suportam a pressão de torcida, treinadores, patrocinadores e chegam ao final da carreira em fiapos, vitoriosos ou não. E não estão aí de mimimi, como alguém escreveu por aí.

Para quem tem coragem, eles dizem, desistir é pipocar, e pipocar não é uma opção. Mas muitos desistem. Mesmo não tendo passado por metade do que a ginasta, vítima de abuso sexual e outras violências, passou.

Desistem enquanto não podem falar sobre limites. Alguns deixam a chamada boa forma no auge. Sofrem policiamento dos bedéis de vestiário e dos torcedores. Saem às escondidas da concentração. Caem na noite. Começam a beber. E se transformam em cidadãos rançosos, cheios de mágoas, questões mal elaboradas, arrependimentos, dores físicas e morais muito antes de se tornarem ex-atletas. Com ou sem sala lotada de troféus.

Será mesmo que suportam tanto peso assim?

Ou será que só não eram autorizados a falar abertamente sobre a urgência de desistir? Ou dar um tempo. Ou cuidar de si. Ou deixar de esconder as dores. Ou a brutalidade de jogar à base de remédios, analgésicos, infiltrações.

Ser chamado de "máquina" é elogio para o atleta que deixa tudo isso de lado, no auge, para pagar a conta mais tarde. Uma conta muitas vezes em forma de compulsão.

O que explica o índice de alcoolismo entre jogadores e ex-jogadores que foram expostos como o símbolo da resiliência e da devoção a clubes, seleções, concentrações, compromissos, da gana por vencer contra tudo e contra todos às custas da própria integridade?

São só perguntas.

De onde estamos, conseguimos, do conforto dos sofás e do ar-condicionado, ver beleza no esforço e na superação. Gabrielle Andersen, que terminou a maratona à beira de um colapso em Los Angeles, em 1984, é símbolo da resiliência ou da desumanidade a que foi imposta? Essa pergunta não faria o menor sentido antes de Tóquio 2020. Hoje faz.

Hoje podemos admirar a beleza do esforço, mas também compreender, ou ao menos nos esforçar, para ver beleza em quem compreende o próprio limite. Biles compreendeu e decidiu falar sobre isso abertamente. Ela não está sozinha. Adriano Imperador, um dos últimos grandes craques do futebol brasileiro, escreveu em suas redes que entendia a decisão da campeã.

Atletas como Michael Phelps já não precisam sofrer em silêncio ou vergonha com a depressão. Foi o que fez Naomi Osaka, outro símbolo dos Jogos, ao desdenhar de Roland Garros para tratar da saúde mental.

Nem sempre é verdade que o esporte tira de nós o que temos de melhor. Mas, buscando o que tem de melhor em nós, podemos também ver na história do esporte o saldo do não-reconhecimento dos limites e da pressão. ("Eu, Tonya", cinebiografia da ex-patinadora campeã do gelo Tonya Harding, deveria ser obrigatório nessas horas. A história de uma tragédia começa quando a criança ouve dos pais que ela será um fracasso se não atingir o topo).

Quando a atleta fala do próprio limite, é um pouco da gente que está falando.

Com ou sem superexposição, somos todos carne vendida no varejo depois de passar por um grande moedor de gente chamado mercado. Ninguém precisa ser triturado sorrindo. Ninguém precisa ser triturado.