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Roteiro das vitórias e derrotas olímpicas prova clichê: nunca é só esporte
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Os Jogos Olímpicos são a inversão a cada quatro anos do poema de Álvaro de Campos, um dos célebres pseudônimos de Fernando Pessoa. Nunca conhecemos quem não tivesse levado porrada. Mesmo nas vitórias de quem é campeão em (quase) tudo.
Do encontro entre atletas e equipes de reportagem, uma pergunta recorrente é a que abre a possibilidade de dizer o que sentiram, o que estão sentindo, o que passa na cabeça ao fim de uma vitória ou derrota. É quando as histórias se revelam e provam o clichê: nunca é só esporte.
Meu filho de oito anos não tem paciência para assistir a uma luta de cerca de três minutos. Mas assistiu até o fim sem piscar, junto com o pai, o relato do judoca Daniel Cargnin, no domingo (25), após ele ganhar a medalha de bronze.
Com os olhos marejados, o olhar meio perdido, a fala entrecortada, como quem busca fôlego, o atleta descreveu os perrengues dos tempos de treinamento. Uma vez, quando criança, ele apanhou tanto que voltou para casa chorando. A mãe pediu que ele comesse alguma coisa e sentenciou: amanhã é um novo dia. Foi a ela que ele dedicou a medalha.
Desde o início da pandemia, Cargnin se lesionou algumas vezes. Ele não conseguiu disputar o mundial de sua categoria porque havia contraído coronavírus. Nada parecia dar certo. Em 2018, na Itália, após uma série de reveses, o judoca escondeu as lágrimas enquanto tomava banho e se perguntava por que sua treinadora não desistia dele. Ele mesmo já havia desistido.
A dor comove pelo que ela revela. E quem lê, ouve ou assiste, na dor lida não sente bem, mas se identifica. Uma identificação inevitável — todo mundo tem na lembrança aquele toque de amigos, familiares, vizinhos e até chefes que não desistiram da gente quando a decisão mais assertiva era jogar a toalha.
No sentido alegórico, quem já tomou porrada sabe o que significa estar de pé no dia seguinte. E no outro. E no outro. Em geral, o que não falta nas rotinas ordinárias, tantas vezes reles, tantas vezes vis, é capitão Nascimento gritando na fuça: "pede pra sair."
Histórias como a de Cargnin se sucedem a cada entrevista à beira do tatame, das quadras, das piscinas e até das praias. Para agarrar o primeiro ouro brasileiro em Tóquio, Ítalo Ferreira teve que encarar dores na perna e um tufão enquanto se lembrava dos tempos em que encaixava palitos de churrasco encontrados na praia para consertar a tampa de isopor improvisada como prancha.
Carol Gattaz ficou de fora das Olimpíadas de Atenas, Pequim, Londres e Rio. Aos 40, é um dos destaques da seleção feminina de vôlei em Tóquio.
Bruno Scheffer ficou com o bronze nos 200m livres de natação após passar três meses sem piscina pra treinar na pandemia.
Rayssa Leal, com apenas 13 anos, queria usar a rampa da escola em Imperatriz (MA) como pista de skate, mas não podia. Ela intercalava treinos entre uma aula e outra e ganhou sua primeira medalha de prata cinco anos antes de atingir a maioridade. Tem tanta metáfora na rampa da escola que não dá nem pra começar.
Kelvin Hoefler encarou a hostilidade da própria delegação, com quem não se dá, e também vai levar para casa a sua medalha prateada.
Primeira prefeita eleita de São Paulo, a hoje deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), de 86 anos, parabenizou a conquista. Há mais de 30 anos, foi ela quem liberou na cidade a prática de uma atividade proibida antes de se tornar esporte olímpico. Chorão, de onde estiver, sorri satisfeito. O jovem skatista agora é levado a sério.
A história do esporte é a história das mudanças políticas e sociais de seu tempo. O tempo atual permite falar sobre afeto, sexualidade, limites do corpo e da saúde mental, como fez Simone Biles ao trocar uma chance real de medalha pelo cuidado de si.
Não desistir, para os atletas, envolve outras renúncias. Durante a preparação, há quem desista do sonho para poder tomar um simples sorvete com os amigos e o crush numa sexta-feira à noite —um pecado imperdoável para quem tem treino no dia seguinte.
É como trocar os melhores anos da vida por um objetivo incerto e todo peso do mundo nas costas. O pedido de desculpas ao país representado após uma derrota é um dos exercícios mais cruéis a que os esportistas são submetidos. Não sei como, mas a síndrome de David Luiz, o zagueiro que chorou após os 7 a 1 na Copa de 2014 dizendo que só queria dar alegria para o seu povo, precisa acabar. Principalmente quando o choro vem de quem passou quatro anos no perrengue, sem atenção, verba ou estrutura para treinar.
Em 2009, a pedido da colunista Mônica Bergamo, fui ao Rio de Janeiro escrever um perfil da atleta Bárbara Leôncio, campeã na prova dos 200 metros rasos do Mundial Juvenil de 2007, na República Tcheca, e que protagonizou o filme da candidatura do Brasil para as Olimpíadas de 2016. Bárbara era o futuro. Faltava pouco e faltava muito para brilhar nas pistas de sua cidade.
Alguns sinais do peso daquilo tudo estavam desenhados naquela visita ao seu local de treino e em sua casa, em Curicica, no Rio. No seu rosto algo perdido, estava mais do que clara a dificuldade em administrar tanta expectativa com tempo tão escasso para tanta coisa que importa na vida de um adolescente. A pressão psicológica era evidente. Bárbara faltou à festa da qual seria anfitriã. Bárbara é uma multidão.
Para atletas como ela, os que não desistiram, mas passaram longe da consagração, não é justo dizer que faltou empenho ou vontade. Na maioria das vezes empenho e vontade é quase tudo o que não falta. Falta o resto.
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