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Como guerra na Ucrânia causou pane em 'torcedores' da esquerda e da direita
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Não está fácil a vida para quem precisa de heróis.
O nosso, montado num jumento alado de nome Messias e escalado para levar ao mundo a mensagem da paz, deixou num silêncio pós-traumático o tio do WhatsApp que ainda aguarda as orientações da rádio oficial do regime para saber como se posicionar.
Até outro dia, pensando ainda viver nos tempos da Guerra Fria, o tiozão vociferava contra o "comunavírus" e as vacinas, sobretudo as russas e chinesas. Via nos fantasmas debaixo da cama e nos espantalhos da guerra cultural as digitais dos soldados soviéticos insepultos. Para ele, como ensinou Olavo de Carvalho, não tinha analista da emissora mainstream que não estivesse encharcado nas águas do marxismo cultural. Os comunistas perderam a guerra, eles diziam, mas conseguiram a vingança se infiltrando em todas as células da produção do pensamento.
Mas eis que o líder da turma se tornou o último chefe de Estado a aparecer na foto ao lado de Vladimir Putin antes de o presidente russo ordenar os ataques à Ucrânia.
Como se uma imagem não dissesse tudo, o líder brasileiro não se conteve e despejou mais de mil palavras ao rasgar elogios ao velho servidor do KGB, a quem manifestou solidariedade após bater continência ao memorial do soldado soviético desconhecido. Ambos viviam um "casamento perfeito". Quem visse a cena pensaria que nos bastidores o visitante botou "Imagine", versão sanfona de seu ministro do Turismo, para dançar abraçado com o par. "I hope someday you'll join us".
Alguns achavam que o brasileiro, tal qual Pelé na Guerra da Biafra, de fato havia conseguido parar a guerra.
E então o cônjuge perfeito, incapaz de ouvir os apelos de paz desenhados na gravata estampada com fuzis, resolve atacar o país vizinho — para desespero de Sara Winter e outras figuras armadas da direita radical brasileira que pregavam a "ucranização do Brasil" nos acampamentos de Brasília. Para bom entendedor, meio gesto neonazista basta.
É que, durante a Segunda Guerra Mundial, grupos ucranianos se aliaram aos nazistas para se libertar da antiga União Soviética. Desse movimento, surgiu uma bandeira rubro negra (com um brasão em forma de tridente), que vira e mexe aparecia nos protestos por aqui. Era uma referência aos grupos nacionalistas, tão saudosos quanto radicais, que saíram do armário após as revoltas contra tudo isso que estava ali em 2013.
Lá, como aqui, as manifestações de rua, tomadas pelo sentimento antipolítica, mudaram os rumos políticos do país, fortaleceram as hostes nacionalistas e criaram as condições para que, pouco depois, uma atração de programas de entretenimento, tão preparado para o desafio histórico do novo século quanto uma ema chapada de cloroquina, chegasse ao poder. Lembra alguma coisa?
Volodymyr Zelensky, o comediante que virou presidente a exemplo de seu personagem na série "Servo do Povo" — nome de seu partido político, aliás — virou ídolo e exemplo da turminha do barulho disposta a pegar em armas e tornar seus países "grandes de novo". Inclusive aqui.
Não se sabe como Zelensky administrará a fama de mensageiro da disrupção depois da guerra. Essa não é uma crise de imagem.
Fato é que, desde o abraço entre Bolsonaro a Putin, ambos avessos a minorias, direitos homossexuais e iludidos da própria virilidade, os sistemas binários de posicionamento entraram em curto-circuito. Quem se ajoelhou diante do computador para assistir à live do capitão e perguntar "a quem devemos prestar solidariedade agora, ó mestre?" segue de joelhos. Não sabe até agora se precisa desenhar as mãos de Cristo guiando o líder nacionalista e prócer da antipolítica, como o nosso, ou o líder da antiga esfera comunista com quem nosso mito anunciou um casamento mais que perfeito.
Hamilton Mourão não ajudou na definição. Para ele, era preciso usar a "força" contra a Rússia. Aparentemente, o brasileiro quer tomar a dianteira de uma refrega que nem a Otan quer começar. Não quer porque sabe que, do lado de lá dos montes Urais, existem milhares de ogivas nucleares capazes de transformar o planeta em um deserto. Foi desautorizado pelo chefe, que chamou a afirmação de "peruada".
À esquerda, a confusão não era menor.
Quem acompanhou a cisão nas redes certamente esbarrou com as novas contribuições da militância para a novilíngua. Apoiadores da ação russa chamavam os que condenaram a guerra de "esquerda Otan-otária". Questionavam onde estavam os revoltados de agora enquanto a Líbia, o Iêmen, a Síria, o Afeganistão, o Iraque e a Palestina eram destroçados. E lembravam que, se era para falar em expansão imperial, era necessário então lembrar das bases militares norte-americanas em volta da Rússia e do resto do globo.
No Facebook, alguém chegou a ironizar a solidariedade ao povo ucraniano. Disse que só faltou levantar uma faixa escrita "vidas nazi importam".
É como se o seu prédio em São Paulo fosse destruído por uma bomba supostamente anti-nazista enviada em protesto contra as atrocidades defendidas pelos "300 do Brasil" durante seu acampamento/micareta em Brasília. Justo, não?
Nas mesmas redes, os brasileiros que aplaudem a guerra ganharam o apelido de "Vladiminions".
Ao menos nesse ponto, o mundo pré-1989, dividido por um grande muro a separar dois polos visíveis e antagônicos, tinha a sua vantagem. Havia o lado de lá e o lado de cá. O certo e o errado, a depender de onde se olhava.
Só que o muro caiu e a História não acabou. Ficou mais complexa para quem busca com lupas, nos destroços da carnificina, um herói e um sentido para chamar de seu.
A guerra, como definiu um amigo, é sempre um tilt nos alinhamentos automáticos.
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