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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como não surtar em um mundo pandêmico à beira de outro conflito mundial?

Há muita especulação sobre quando Putin vai atacar a Ucrânia, mas é possível que conflito já tenha começado, diz especialista em segurança e defesa - Getty Images
Há muita especulação sobre quando Putin vai atacar a Ucrânia, mas é possível que conflito já tenha começado, diz especialista em segurança e defesa Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

12/02/2022 04h00

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Email inválido

Do outro lado da linha, um atendente da operadora de celular me falava de todas as vantagens da migração para o novo plano. Vou ter o dobro de benefícios pagando só um tanto a mais do valor que já pago hoje. Por mais um ano, as ligações já ilimitadas ficariam ainda mais ilimitadas e o plano de dados, que geralmente me sobram, me sobrariam ainda mais. É ou não é um bom investimento?

Como sempre acontece, meu total alheamento como parte integrante da conversa não era cálculo. Em algum momento, até pensei por que diabos respondi que sim, claro, estava disponível, vamos conversar, quero muito saber dos planos para melhorar minha conexão com um mundo que está prestes a ir para os ares.

Nos últimos dias, não consigo desenvolver uma conversa de mais de um minuto sem pensar em mais nada a não ser nela: a imagem das tropas russas se movimentando em direção à fronteira da Ucrânia.

Sim, eu vejo pessoas mortas. Com qual frequência? O tempo todo. E tanques. Mal fecho os olhos para (tentar) dormir e eles aparecem por todos os lados na minha pequena cidade do interior paulista. Por um período (uma semana? Dois meses? Um ano?) tentei fugir do noticiário vindo do leste europeu como a criança que vê os pais brigando e, ainda assim, vai dormir tranquila na ilusão de que eles são adultos e vão se entender.

Já disse e repito: uma das saudades mais sentidas da juventude é aquela sensação de que o adulto, por ser adulto, sabia alguma coisa do que estava fazendo. Então, tento sorver meus últimos oito meses na casa dos 30 anos sem saber se chegarei vivo aos 40 porque, a 11.768 quilômetros daqui, os marmanjos não conseguem chegar a um consenso para deter a guerra iminente.

Ok, o risco de sucumbir e desaparecer a qualquer momento é uma contingência quase básica dessa vida. Ainda mais em tempos pandêmicos. Mas fica difícil não pensar nisso fixamente — ou pensar em qualquer outra coisa — quando o secretário de Estado americano joga a toalha e declara que a guerra na Europa pode estourar a qualquer momento.

Isso porque a Rússia ameaçou responder com tiro, porrada e bomba caso a Ucrânia, sua vizinha, fosse incorporada à Otan, organização militar criada pelos países ocidentais na Guerra Fria justamente para manter os russos no cercadinho. Um cercadinho que, em caso de admissão, ficará ainda menor.

Nas últimas semanas, a coisa se degringolou de um jeito que até a China fez o mundo saber que quem mexer com a Rússia vai mexer com ela também.

A turma do deixa-disso entrou na pista e não deu em nada. A declaração mais amigável após horas de conversa tão calorosas quanto uma mesa gigante e antisséptica com dois líderes quietos em cada ponta aconteceu após um encontro entre um chanceler russo e sua colega britânica: "Foi uma conversa entre um sudo e um mudo". Se era pra rir, não entendemos.

Se fosse briga de gangue, eu já me assustaria (e já fiquei apavorado por menos). Imagina que num território X, o Comando Rubro tenha alertado os chefões do Oitavo Comando (nomes meramente ilustrativos, tá ok?) que eles podem fazer o que quiser, mas longe dali: se cooptarem o líder do bairro vizinho, um entreposto entre as duas facções, vai ter revide. Ninguém gosta de secar a roupa, afinal, com um fuzil do inimigo apontado para o nosso quintal.

Como as ameaças não foram suficientes, os rubros decidem chamar o Gabinete do Crime para formar uma joint-venture até o inimigo comum recuar.

É a guerra do todos contra todos, e não importa quão distante você e eu estejamos disso: na hora que o pau torar, seremos todos a versão adulta do personagem Buscapé, do filme "Cidade de Deus", tentando pegar uma galinha já condenada no meio de um tiroteio. Quando a briga de facção acontece em escala global, tudo muda de figura. Não dá para fugir para Marte e voltar quando a coisa esfriar.

Também fica difícil se concentrar em qualquer outra atividade quando parece que estamos vendo um replay de uma catástrofe ocorrida há mais de cem anos. Um conflito global seguido de uma pandemia. Boa sorte para quem quiser manter a ansiedade sob controle.

Minha conversa com a operadora virou também uma conversa de surdo com mudo. O único plano para o futuro que me interessa é não precisar abrir a geladeira à noite e encontrar o Putin avisando que o iogurte foi confiscado para os tempos de racionamento.

A exemplo do século passado, a conversa em terreno despreparado, como alertou o chanceler russo, tem tudo para dar (muito) errado. É o que sempre acontece quando os dispositivos diplomáticos falham e desmentem a máxima de que, quando um não quer, dois não brigam. Nas últimas guerras mundiais, bastou um querer — e quando o trem perde o freio, é muito difícil fazer parar. Principalmente quando a pista está encharcada de ódio e provocação.

Era assim há cem anos. Esse terreno não só segue encharcado como já tem quem não se envergonhe de vestir a suástica.

E então você fica sabendo que o presidente do seu país está indo para o epicentro da colisão enquanto os inimigos estão se pintando para a guerra. Justo ele, que não consegue propor um acordo de paz entre os dentes e o estômago diante de um camarão.

Por alguma razão, os estrategistas palacianos acharam que seria uma boa hora para tirar o capitão do cercadinho e levar seu repertório de piadas de tiozão que misturam saliva, pólvora e incidentes diplomáticos para tomar um bronze em um estande de tiros na Rússia. Não estranharia se, em vez de acordos comerciais, Jair Bolsonaro voltasse para casa com uma assinatura de rendição.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL