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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Moïse Kabagambe foi espancado até a morte. Vamos desviar do corpo e seguir?

Quiosque onde Moïse Kabagambe trabalhava - Divulgação/TV Globo
Quiosque onde Moïse Kabagambe trabalhava Imagem: Divulgação/TV Globo

Colunista do TAB

02/02/2022 04h00

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Jorge Luís Borges escreveu, certa vez, que fechou os olhos e viu um bando de pássaros. A visão durou um segundo e ele nunca soube quantos pássaros viu. "Era definido ou indefinido o seu número?", perguntava.

O problema, para o autor de "Argumentum Ornithologicum", envolvia a existência de Deus. Se Deus existisse, o número seria definido. Se Deus não existisse, o número era indefinido, "porque ninguém sabe fazer a conta".

Caído, provavelmente desacordado, após sentir tontura ou tropeçar em seu passeio noturno por Paris, no dia 29 de janeiro, o fotógrafo suíço René Robert, 89, passou nove horas no chão da rua Turbigo, na movimentada Praça da República. Nove horas representam 540 minutos.

Nesse intervalo, quantas pessoas passaram por ele? O número é definido ou indefinido? Se for definido, Deus existe — e adora ironias.

René permaneceu invisível entre uma loja de vinhos e uma ótica. Justo ele, que usou as próprias lentes para registrar com luzes e sombras os deuses do flamenco como Camarón de la Isla e Paco de Lucía. Seus registros eram retratos em branco e preto. No preto e branco, costumava dizer, havia um lado trágico mais adaptado ao flamenco.

Essa dualidade estava absorvida na noite escura em que permaneceu estático e despercebido pelos caminhantes que desviavam do corpo, despreocupados em saber se ele estava dormindo ou morrendo. Coube a um morador de rua notar que o homem jogado ao chão não era um deles. Foi ele quem chamou os bombeiros.

Quando o fotógrafo chegou ao hospital, os médicos nada puderam fazer. René Robert tinha um quadro de hipotermia grave. Morreu de frio.

René seria mais um dos mais de 500 mortos de frio (o número também é indefinido) a desaparecerem esquecidos pelas ruas da capital francesa se não fosse um artista conhecido, amigo de jornalistas como Michel Mompontet, que o descreveu como um homem "muito elegante, estilo flamenco, com lenço de bolinhas".

Em um programa de TV dedicado ao amigo, Mompontet questionou: "Teria me afastado de um sem-teto se o visse deitado na frente de uma porta?". Ele mesmo respondeu. "Não poder ter 100% de certeza disso é uma dor que me persegue."

No calor de uma manhã de fevereiro no Brasil, questionar se era definido ou indefinido o número de pessoas que passaram indiferentes pelo corpo de Moïse Kabagambe não revela só um dilema existencial, para ficar na alegoria de Borges. Revela um exercício de identificação — um choque para a imagem de país acolhedor, alegre e festivo para onde Lotsove Lolo Lavy Ivone se mudou com a família, em 2014, fugindo de uma guerra tribal em seu país, o Congo.

"A gente chegou aqui e os brasileiros sempre foram pessoas boas. Mas hoje, não sei mais", disse ela, em entrevista recente ao jornal O Globo.

Aqui, morrer por indiferença, frio ou frieza é quase luxo. Morre-se por ódio.

Não foi por outra razão que seu filho desapareceu, aos 24 anos, após ser espancado até a morte em seu local de trabalho, em um quiosque da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro — cidade onde cobrar de um passageiro o uso correto da máscara é também risco de morte.

O nome do quiosque é Tropicália. Imagens do sistema interno de segurança mostram o momento em que cinco pessoas se revezaram entre socos, chutes e golpes com pedaços de madeira. O linchamento durou cerca de 15 minutos, mas não começou nem terminou ali. O número de sopapos é também indefinido.

Moïse seguiu apanhando mesmo quando já estava desacordado. Alguém saberia dizer o momento exato em que morreu? Foi antes ou depois de ter as mãos e os pés amarrados? Foi assim ao menos que ele foi encontrado, já sem vida, com "áreas hemorrágicas de contusão", inclusive no tórax e pulmões, pelos policiais.

Moïse morreu após teimar em querer receber seu salário no quiosque onde trabalhava. Não foi o primeiro nem será o último — e saber disso dá à pergunta de Jorge Luis Borges um outro elemento multiplicador.

Quantas pessoas passaram pela orla do bairro nobre carioca enquanto sua mãe esperava que ele voltasse para casa? Quantas pessoas negras, como ele, não morreram igualmente amarradas e açoitadas neste país, antes e depois de 300 anos de escravidão? Quantas não receberam na pele os mesmos castigos por se levantarem contra a atualização permanente de um sistema de exploração do trabalho via espoliação de corpos?

Quantas assistiram caladas sem saber se o corpo açoitado estava dormindo ou morrendo? Quantas não questionam agora por que a vítima não foi para casa conformada e com o coração cheio de gratidão pela oportunidade de trabalho que o patrão lhe havia assegurado? Quantos não agonizam diariamente pelas lentes do desprezo e da ojeriza sobre sua humanidade, antes de serem eliminados como bichos?

Se Deus existe, todos esses números são definidos. E, se houver alguma justiça além dessa vida, o pior que pode acontecer com muitos desses que falam e pensam em nome de Deus é que esse Deus realmente exista e saiba fazer contas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL