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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que esperar do país que negou direito ao luto do passado e do presente?

O presidente Jair Bolsonaro é criticado por políticos pela sanção do Orçamento de 22, que garante as despesas do fundo eleitoral em R$ 4,9 bi. Foto: Alan Santos/PR - O presidente Jair Bolsonaro é criticado por políticos pela sanção do Orçamento de 22, que garante as despesas do fundo eleitoral em R$ 4,9 bi. Foto: Alan Santos/PR
O presidente Jair Bolsonaro é criticado por políticos pela sanção do Orçamento de 22, que garante as despesas do fundo eleitoral em R$ 4,9 bi. Foto: Alan Santos/PR Imagem: O presidente Jair Bolsonaro é criticado por políticos pela sanção do Orçamento de 22, que garante as despesas do fundo eleitoral em R$ 4,9 bi. Foto: Alan Santos/PR

Colunista do TAB

29/01/2022 04h00

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Dentro e fora da basílica da Penha, no centro expandido de Recife (PE), a fila para o velório de Frei Damião chegava a dois quilômetros. Ao menos 40 mil pessoas passaram por ali em 1º de julho de 1997 para se despedir do Santo do Nordeste, morto na véspera, aos 98 anos, após 19 dias em coma.

"Para nós acabou a metade do mundo", disse ao repórter Vandeck Santiago uma mulher que viajou 130 quilômetros de Caruaru até a capital para fazer as últimas homenagens ao frei italiano que passou 66 anos peregrinando e reunindo multidões pela região.

A Polícia Rodoviária Federal precisou montar um esquema para evitar congestionamento ou acidentes provocados por quem viajava de outros estados em direção à basílica. Uma missa de corpo presente aconteceu na manhã do dia seguinte, no Arruda, estádio do Santa Cruz, antes de o corpo seguir para o convento de São Félix de Cantalice, no bairro do Pina.

O velório contou com a presença de autoridades como Marco Maciel e o governador de Pernambuco Miguel Arraes. O então vice-presidente declarou que o frei "sempre esteve ao lado dos pobres e desvalidos" e que o governo federal havia decretado luto oficial de três dias em sua homenagem.

Mais de duas décadas depois, em novembro de 2020, enquanto corria no Vaticano o seu processo de beatificação, o decreto de luto assinado por Fernando Henrique Cardoso foi revogado. Frei Damião e seus milhares de devotos foram mandados por Jair Bolsonaro ao paredão do apagamento histórico junto com líderes políticos, juristas, intelectuais e jornalistas dos quais ele não reconhece a importância.

Na companhia do frei estão dom Helder Câmara, o escritor Darcy Ribeiro, o diplomata Roberto Campos, o governador Franco Montoro, o premiê israelense Yitzhak Rabin e outras 20 personalidades. Escaparam da desfeita os ex-ditadores João Figueiredo e Ernesto Geisel — que, aliás, não escondia o desprezo por um certo "mau militar" que se embrenhou na política para espalhar seu radicalismo.

A borracha do presidente ocorreu na esteira dos "revogaços" anunciados pelo governo para anular normas "cuja eficácia ou validade encontra-se completamente prejudicada".

Não se sabe como as homenagens, encerradas três dias após os decretos, ajudaram a racionalizar, desburocratizar e simplificar o ordenamento jurídico do país, como o governo justificou.

O pano de fundo é um processo já em curso de desumanização dos corpos, produtivos, mecânicos e satisfeitos em direção ao matadouro por não ter tempo ou condições de pensar na vida ou na morte.

O estudo da personalidade perversa é um tema em alta no Brasil desde a posse de Jair Bolsonaro como presidente. Entre um passeio e outro de moto, jet ski e cavalo, as tardes colorindo e passando corretivo em livros antigos do Diário Oficial talvez fossem uma forma de ativar algum prazer sádico ao governante entediado. Apagando da lista as personalidades históricas de seu país, sobraria apenas um, por eliminação, para contar e trazer a verdade. O Messias.

Curioso que o luto do passado tenha sido apagado no momento em que os brasileiros tiveram suprimido o direito de enterrar seus mortos e prestar a eles as devidas homenagens. Muitas vezes, o processo de realização da perda foi constrangido ou trocado pela raiva alimentada pelo presidente que declarou não ser coveiro — e queria saber até quando duraria a frescura dos compatriotas a chorarem por pais, filhos, amigos, parentes, vizinhos.

Naquele mês, 13,2 mil pessoas haviam morrido em decorrência da covid-19. Em poucos dias, cerca de 50 países, entre eles EUA e Reino Unido, começariam a vacinar a sua população contra o vírus.

O presidente seguia (e ainda segue) dizendo que a melhor vacina era a contaminação e chegou a comemorar a suspensão dos testes da Coronavac após a morte (por suicídio) de um voluntário. "Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", escreveu em suas redes em 10 de novembro.

Enquanto a covid-19 avançava e municípios brasileiros estavam prestes a se tornar laboratórios de tratamento por asfixia patrocinados pelo governo, Bolsonaro encontrava tempo para cumprir a cartilha apresentada em um jantar nos EUA ao lado do ideólogo de seu governo, Olavo de Carvalho: a cartilha da destruição. Por ironia, o guru bolsonarista foi uma das duas personalidades que mereceram um decreto de luto na atual gestão.

Nas repartições loteadas por soldados da sua guerra cultural, livros são banidos, editais são suspensos, propagandas são censuradas, artistas são excluídos da lista de personalidades, servidores são demitidos, perseguidos ou constrangidos quando não demonstram alinhamento automático ao líder. Nem os mortos escapam da sana.

Naquele jantar premonitório, o presidente afirmou que o Brasil não era um terreno aberto onde pretendia "construir coisas para o nosso povo", mas sim "desconstruir" e "desfazer muita coisa".

A memória e o direito ao luto que conservam dignidade a vivos e mortos são peças-chave a serem removidas nesse processo de aniquilação. Bolsonaro está cumprindo a promessa.