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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

BBB 22: por que diabos pão de Arthur Aguiar virou símbolo da transgressão?

Arthur Aguiar cai de boca no pão de forma - Reprodução Tv Globo
Arthur Aguiar cai de boca no pão de forma Imagem: Reprodução Tv Globo

Colunista do UOL

05/02/2022 04h00

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"Ensinamos ele a fazer as melhores escolhas. Todos somos responsáveis por nós mesmos e devemos arcar com as consequências."

Li a declaração acima, feita pela youtuber Maíra Cardi (agora sem o "Y") e fiquei curioso para saber o que seu marido, o ator Arthur Aguiar, havia aprontado no BBB 22. Teria agredido alguém? Usou drogas no confessionário? Quebrou as câmeras de monitoramento e vigilância e instituiu um califado nos estúdios da TV Globo? Ou jogou na privada o anel de compromisso e montou ali um harém com o neto do Silvio Santos?

Nada disso.

Maira, que é coach de emagrecimento, estava revoltada porque o "conge" havia quebrado o combinado e comido um pão, ao vivo, diante das câmeras.

Orgia, se houve, foi gastronômica. Fosse só pão, vá lá. Mas Aguiar também comeu lasanha. E empadão. No mesmo dia. Possivelmente no mesmo quarto. Também confidenciou a um amigo de confinamento que a carninha estava boa. A batata também.

O nosso guerreiro que só queria jantar em paz talvez ficasse em dúvida caso alguém perguntasse se ele preferia malhar ou comer batata. "Prefiro malhar e comer batata", diria a versão sem glúten do nosso Charlinho, personagem icônico de Hermes e Renato.

Mas é de outro momento icônico da TV brasileira que me lembro quando vejo os perrengues pelos quais deve passar o rapaz no outro confinamento, o da vida real, igualmente vigiado, fora do Big Brother. Não consigo vê-lo se esbaldar na iguaria sem pensar que uma hora dessas o espírito do Craque Neto já baixou na companheira: "Pããããããããão".

E pão de forma ainda, Maira!

Nas redes, a influencer lamentou, em tom de ironia, a traição do "conge" em rede nacional. Fez até enquete aos seguidores para saber se deveria perdoar e dar a ele mais uma chance ou não.

Ela também compartilhou uma imagem do rapaz em tom de julgamento. Nem um telescópio seria capaz de identificar qualquer desvio de padrão no tanquinho ainda preservado da barriga, mas ainda assim ela jurou vingança pela transgressão: "Quando você voltar a gente queima esse pão".

Michel Foucault ficaria em choque. Tantos séculos de luta pela liberdade, contra opressões políticas e repressões sexuais, dessas que mandavam para o inferno da terra e do recalque os desejos da carne e do corpo, se encontram agora na mesa onde o sujeito contemporâneo olha para o pão e vê de um lado um anjo, de outro o demônio, e não consegue identificar qual deles diz que "somos responsáveis por nós mesmos e devemos arcar com as consequências".

As traições ao vivo mostram que, longe daquela nóia, o personagem real, revelado durante o programa, não está assim tão ligado àquela vida de vigilância e punição.

A bronca de Maira com a transgressão do marido prova que a repressão mudou de cômodo ao longo dos séculos. Saiu do quarto e foi parar na cozinha. A forma de controle é parecida: os pecados divulgados por todos os lados dos séculos passados desmobilizavam afetos e desejos dos sujeitos condenados a viverem trancafiados em casa, sob ordem e vigilância, avessos a qualquer tensão ou intensidade.

Hoje esses pecados invertem a figura bíblica: o que contamina o pecador não é o que sai de sua boca, mas o que entra. E nada pode causar mais ojeriza do que um pão besuntado de gordura vegetal e carboidrato.

Não deixa de ser um corte de classe e distinção: é preciso muito tempo e dinheiro para chegar perto de cumprir todos os acordos das dietas dos famosos até se tornar um deles. Tudo para ter um corpo definido conforme todos os padrões. Um corpo suprimido de todas as permissões.

Erra quem pensa que só quem habita o Olimpo está acorrentado. Não quero desanimar ninguém, mas conheço ao menos um casal que topou fazer dieta junto certa vez e entrou em crise porque um dos "conges", ao quebrar a rotina de restrições alimentares, foi sem o outro para o bar e se apaixonou por uma pessoa que bebia com lascívia uma lata de refrigerante. Aquela lata tinha virado o símbolo de uma libertação.

É estranho, mas faz todo o sentido que para fugir de uma vida de controle e vigilância seja preciso ficar confinado em outra clausura. Para poder comer um simples pão em paz e aos montes, como se não houvesse amanhã.