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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Salva da lama em Petrópolis, tese de astrônoma ameniza um pouco nosso luto

 Cenário da Vila Felipe, onde parte de uma encosta deslizou em Petrópolis - Lucas Landau/UOL
Cenário da Vila Felipe, onde parte de uma encosta deslizou em Petrópolis Imagem: Lucas Landau/UOL

Colunista do UOL

23/02/2022 04h00

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Como eram as condições da Terra no passado? E o que o futuro nos reserva? Existem outros planetas como o nosso por aí?

Parte do avanço em direção a respostas para perguntas como essas poderia ser barrada pela lama se o irmão da astrônoma Geisa Ponte, 36, não tivesse avisado que estava chovendo muito na casa dele. Ambos moram em Petrópolis, município da região serrana do Rio de Janeiro onde quase 200 pessoas morreram — e outras tantas seguem desaparecidas em meio às chuvas intensas da última semana.

A casa do pai de Geisa, de onde ela trabalhava remotamente, ficava ao pé do morro, próximo de um rio. Uma área de risco onde o nível das águas chegaria em breve a 20 metros de altura.

Antevendo a tragédia, em poucos minutos ela conseguiu convencer o pai, de 73 anos, a deixar a moradia prestes a ser varrida pela lama. Saiu às pressas com ele e seis cachorros da família em direção a uma escadaria de acesso ao morro, construída em frente à sua casa. Roupas e objetos com valor afetivo foram colocados em cima da escrivaninha e das estantes. Na mochila, ela colocou documentos, remédios e o computador onde trabalha e estuda. Foi como se tivesse salvado o mundo todo.

É neste computador, configurado com todos os programas usados em seu trabalho e em seus estudos, que está a sua pesquisa de doutorado em andamento no IAG-USP (Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo).

Com uma bolsa Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, fundação vinculada ao Ministério da Educação), Geisa se dedica a observar estrelas do tipo solar. Sua especialidade é a composição química dessas estrelas, compreendida por meio de dados de espectroscopia — o estudo da interação entre luz e matéria.

É através dessas observações que especialistas como ela podem ajudar a responder as questões mais profundas que alimentamos desde que o mundo é mundo: de onde viemos e para onde vamos.

O relato de sua história, contada pela professora e também pesquisadora Sabine Righetti, na Folha de S.Paulo, me levou a tentar entender a importância da observação das chamadas "estrelas gêmeas" — que se parecem com o sol — para a compreensão desse mistério. Tenho um filho de oito anos que descobriu, em uma aula recente, um interesse crescente por astronomia. É realmente fascinante.

Em threads e artigos para revistas dedicadas à ciência, Geisa explica que quando uma estrela "gêmea" é mais jovem que a nossa, é possível basicamente observar nosso passado — e ter uma noção sobre as condições que permitiram o surgimento da vida neste planeta. Quando a estrela é mais velha, pode-se observar como o nosso sistema vai evoluir. Sim, é como antever o futuro.

Fenômenos que podem varrer a superfície terrestre — ou pelo menos prejudicar satélites e avariar nossos sistemas de eletricidade — podem ser então compreendidos com os estudos sobre essas estrelas e seus campos magnéticos. Para conhecer o nosso próprio Sol, portanto, é preciso conhecer suas estrelas "irmãs". Esses estudos ajudam também na busca por planetas parecidos com o nosso — a tão procurada Terra 2.0.

"Estimando o Sol do passado e o Sol do futuro e podendo analisar sistemas exoplanetários, chegamos a um ponto interessante: a busca por respostas sobre a nossa própria existência, antes, agora e depois", escreveu a cientista em seu Twitter certa vez.

Pois é. "Só" isso.

Se no futuro especialistas como ela ajudarem a encontrar essas respostas, será preciso lembrar do dia em que passado, presente e futuro se reuniram em sua mochila, mãos e pernas para esperar a chuva passar — graças ao alerta do irmão, e não do poder público incapaz de detectar, nos sinais a poucos metros acima da nossa cabeça, os fenômenos que varrem a superfície terrestre a cada temporal.

Nas montanhas de lama que varreu Petrópolis, é incalculável a quantidade soterrada de histórias, talentos, potências e respostas para o futuro, mesmo em forma de livros. As histórias de quem se salvou para contar a história ajudam a dimensionar como é fina a matéria vida. Quantos segredos do universo deixarão de ser revelados nos futuros interrompidos pela tragédia?

Geisa, seu pai e seus cães sobreviveram. Sua tese e seu computador estão seguros. Passado o trauma, as nuvens e as trevas, pessoas como ela poderão seguir iluminando um pouco mais as nossas questões mais profundas.

A energia das estrelas se dissipa pelo espaço em forma de luz. Parece uma metáfora, não? Mas é tudo o que precisamos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL