'Choro por pessoas', diz dono de livraria devastada em Petrópolis
Não que tenha sido o amor de toda uma vida. A paixão pelos livros de Amauri Madeira, 56, veio tardiamente -- já na idade adulta, entre embarques e desembarques. Enquanto era consultor internacional da PricewaterhouseCoopers, Amauri gastava os intervalos entre voos nas livrarias dos aeroportos, primeiramente flanando e, depois, consumindo literatura.
Quando se deu conta, estava dominado. E, assim, há 21 anos, mudou de ramo e de vida. "Foi como se eu tivesse encontrado uma razão que desconhecia", conta. Até que no último dia 15, vieram a chuva e a tragédia.
Amauri é dono da Livraria Nobel em Petrópolis. A loja na Rua 16 de Março (aniversário da cidade) foi tomada pelo transbordamento do rio que corta o Centro Histórico. Lixo e lama também invadiram o ponto comercial da Editora Vozes, na Rua do Imperador. E, assim, de uma só tacada, literalmente da noite para o dia, a cidade ficou sem suas duas livrarias.
Dois dias após a enxurrada que varreu Petrópolis, uma imagem com uma pilha de livros encharcados em frente à Nobel viralizou nas redes. Mas, desde então, a perda só cresce: já chega a 15 mil exemplares destroçados e amontoados em mais de 15 metros de calçada. A coleta de lixo ainda é precária na cidade e a limpeza da livraria de Amauri não acabou.
"Não tenho direito de chorar pelos livros. Choro pelas pessoas que se foram com a chuva, porque o valor de cada livro está em quem o lê. Sem leitor, o livro é só mais uma coisa, um objeto qualquer", diz.
A Nobel representa um pouco do que tem acontecido em Petrópolis desde a tempestade. Ali há perda e dor, mas também urgência pela reconstrução e, principalmente, solidariedade. No sábado (19), as estudantes e primas Elisa Santos e Eduarda Sieiro, ambas 17, se apresentaram como voluntárias para, de alguma forma, ajudar a reerguer a livraria. A dupla atacou na limpeza.
"Ex-funcionários, clientes fiéis e até gente que nunca tinha pisado na livraria vêm oferecer todo tipo de apoio. Só isso já nos dá a certeza de que é preciso seguir adiante", afirma o livreiro.
A família de Amauri -- com exceção da filha mais velha, Gabriela, 31, psicóloga que mora no Rio -- vive da livraria e em função dela. A mulher, Sandra, 57, deixou a fisioterapia e virou sócia no negócio. O filho do meio, Leonardo, 26, é gerente. A caçula Daniela, 22, faz as vezes de vendedora quando não está nas aulas de Psicologia. O quadro da Nobel se completa com oito funcionários.
Bastidores da destruição
Na tarde trágica, o único representante da família presente na loja era Leonardo. Gabriela estava no Rio. Amauri e Daniela, em casa. Sandra tinha ido fazer um exame radiológico no Morin, bairro cortado por um córrego. Desesperada com a água subindo numa velocidade assustadora, arrancou a alça da bolsa para amarrar o para-choques do carro a um poste. Tentativa vã, foi perda total. O carro estava no seguro. A Nobel, não: seguros contra enchentes e desabamento não são oferecidos para imóveis de Petrópolis.
Na livraria, o esgoto do banheiro começou a transbordar e a água do rio a invadir o espaço, descendo ao subsolo, onde ficava o estoque. Quando o alagamento do depósito já parecia inevitável, um buraco se abriu na parede lateral, acelerando a inundação. A água chegou ao teto do depósito, de três metros de altura, derrubou estantes e cobriu tudo.
Restou apenas o que estava em exposição no andar de cima. Exaustos e sem o carro da família, Sandra e Leonardo seguiram a pé para casa.
"Perdemos a metade. Mas prefiro enxergar que o copo está 50% cheio a 50% vazio, ver o lado bom da vida", diz Amauri, que em 26 de janeiro último, recebeu do médico a notícia de que tinha se curado de um câncer de nasofaringe.
Relíquias de uma tragédia
Os livros empilhados na calçada são inservíveis, na avaliação do livreiro. Muitos discordam -- já que, vira e mexe, alguém leva um ou mais exemplares enquanto o lixeiro não passa. Amauri alerta que o material está contaminado pelo esgoto, dá bronca, mas pouco adianta. Para essa turma, o amor pelos livros, parece, vale o risco.
Desde que a enxurrada devastou, sem exceção, todo o comércio da Rua do Imperador, a loja da Vozes -- uma editora católica --, continua fechada, sem movimentação aparente de funcionários. Segundo o supervisor Renan Bernardo, 28, a água do rio chegou ao caixa, mas o estoque, não por milagre (e sim por ficar no segundo andar), foi totalmente preservado. Ainda assim, não há previsão para a reabertura.
Vozes e Nobel têm perfis diferentes. Enquanto a primeira vende, além de artigos religiosos como santos e terços, livros relacionados às ciências humanas e temas da igreja, a Nobel é mais generalista, com títulos de cerca de 60 editoras, dos infantis aos clássicos.
Em exemplares descartados, a inundação causou à Nobel prejuízo aproximado de R$ 500 mil, segundo seu dono. Como 70% do estoque é consignado, ou seja, pertence às editoras mas está sob a guarda da livraria, Amauri torce para que não seja cobrado pelas obras perdidas -- como já fez a Companhia das Letras, que avisou ao livreiro que não cobrará pelos exemplares perdidos. Só assim, diz ele, será possível seguir com o negócio que move sua vida.
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