'Todos os meus filhos estão mortos': famílias aguardam no IML de Petrópolis
O IML (Instituto Médico Legal) de Petrópolis (RJ), na rua Vigário Corrêa, não se via tão cheio desde o desastre de 2011 na região. Eram 15h e ao menos 50 pessoas estavam espalhadas no pátio externo. Além das cadeiras azuis e brancas ocupadas, havia gente sentada em uma mureta. Carlos Henrique Alves e Beatriz Alvez estão cabisbaixos e evitam conversar com a reportagem. Contam que têm dores de cabeça, preocupações e não aguentam mais dar entrevistas. Minutos depois, mudam de ideia.
Desde quarta-feira (16) de manhã, o casal sai do bairro do Bingen, onde está hospedado — na casa do pai de Beatriz — direto para Corrêas, no IML. São 15 km e menos de 15 minutos de moto. O objetivo principal é liberar o corpo da mãe de Beatriz, que foi soterrada depois que sua casa caiu junto com mais cinco no Morro da Oficina, no Alto da Serra. O único pertence que sobrou da família foi a moto — o transporte mais fácil para circular pela cidade.
Entre uma passada e outra de um papel nos olhos, Beatriz, que era vizinha da mãe, relembra a noite desesperadora. Ao chegar do trabalho, já à 01h da madrugada, viu as construções abaixo e a filha toda machucada. A criança e uma tia conseguiram se salvar por pouco. Todos foram para a casa do pai de Beatriz. A mãe, que foi encontrada naquela madrugada, foi direto para o IML, mas o corpo segue pendente de liberação.
Carlos parece mais baqueado. É ele quem tem dado entrevistas e tentado resolver a burocracia. Aos poucos, solta uma frase ou outra sobre os últimos dias. "Estamos aqui há três dias e sinto que nossa vez nunca chega", diz. "Parece que nos colocam no fim da fila todo dia. Já reconhecemos o corpo, já preenchemos a papelada. O que mais falta para liberarem o corpo da minha sogra?", desabafa.
Nove mortos da mesma família
No aglomerado de pessoas, é fácil identificar um familiar que perdeu alguém. O cansaço se mistura à angústia de três dias no aguardo. Uma das presentes diz que está aguardando o corpo da sogra. Enquanto isso, o marido e a cunhada foram enterrar duas crianças.
Nas últimas horas, algumas histórias se repetem — seja para aguardar a liberação de um corpo para um enterro digno ou a tristeza da confirmação da morte de alguém que não escapou do desastre. Há gente que perdeu oito, nove e até 14 entes queridos.
Uma delas é Elisa. Sentada entre duas amigas, aguarda a liberação do corpo da mãe, da cunhada, da filha e de dois tios. Outros dois filhos, um tio e a avó ainda não foram localizados. Todos moravam juntos em um sobrado de dois andares. Dentre os que ali viviam, apenas ela — que na tarde de terça-feira foi ao shopping com uma sobrinha e ficou lá durante a chuva — sobreviveu.
Consolada pelas amigas, Elisa ouve o nome da filha e corre ao encontro de uma funcionária do IML. Quem conversou com a reportagem foi uma das companheiras, que não quis se identificar. "Fiquei sabendo que a casa dela caiu, mas que ela e os filhos estavam fora. Fiquei tranquila até conseguirmos nos falar. 'Me ajuda, todos os meus filhos estão mortos', me disse. Corri para encontrá-la".
Momentos antes do deslizamento, Elisa e os filhos adolescentes se falaram por chamada de vídeo.
Os desaparecidos
Ao pegar o microfone — forma com a qual o Instituto se comunica com os presentes —, uma funcionária descreve a característica de um desaparecido que não foi identificado pela digital. Homem branco com um molho de chaves no bolso. Uma mulher se levanta da última fileira, vai até a frente e pergunta outras características. Depois de tantas negativas, percebeu que não era quem procurava e sentou-se de novo.
Outro corpo não identificado foi anunciado. Tratava-se de uma criança que usava um anel de cisne e um brinco trançado. Uma voz entre os que aguardavam repetia alto as características anunciadas. Ninguém foi até lá. Sentados, dois homens de meia idade e uma mulher conversavam sobre a tia desaparecida. Delaine Fernandes Barbosa, 34, seu tio e um primo aguardam que a tia, Enir dos Santos Barbosa, 65, seja encontrada e identificada.
"Dizem que ela estava dentro de casa com o cachorro, o Nick", explica a sobrinha sobre a noite do desastre. O corpo canino foi encontrado, já sobre o paradeiro da tia há diferentes suposições. Um ex marido disse ter pedido, por telefone, que a ex saísse da casa meia hora antes do desabamento e acredita que ela tenha fugido. "Cê acha?! Ela já teria aparecido", conta um dos homens, que era amigo de Enir há mais de 40 anos.
Delaine não sabe em quem acreditar, mas segue, desde quarta-feira, batendo ponto das 11h às 17h no IML. A cuidadora de idosos relembra que estava na casa da patroa quando recebeu a notícia do desastre no bairro do Caxambu, onde a tia morava. "Não aguento mais perder gente querida. Anos atrás, perdi meu pai, minha mãe e, no ano passado, um tio. Agora essa história".
Alheia ao que acontecia ao seu redor, ela disse que vai guardar para si as palavras que a tia sempre dizia: "Quando eu ficava desanimada e triste com algo, ouvia: 'Não desanime, corra atrás dos seus sonhos e objetivos'".
Sala Lilás
Os corpos são levados para o IML, identificados, registrados e depois anunciados aos familiares. Estes, aguardam ansiosamente ao redor da Sala Lilás, que fica próxima ao estacionamento do Hospital Alcides Carneiro e é utilizada, em períodos normais, para acolher mulheres vítimas de violência. Tudo está no mesmo Complexo no bairro de Corrêas.
Na sexta-feira (18), quando saia alguém da sala, todos prestavam muita atenção, ansiosos por notícias. É de lá que chegam as informações sobre os corpos encontrados e liberados. Ninguém, além dos funcionários escalados para o trabalho, é autorizado a entrar.
O ambiente é de tensão. Funcionários exaustos tentam organizar a lista de nomes de pessoas encontradas e identificar os corpos que chegam. Jornalistas fazem plantão. Já os familiares estão em luto e angustiados. Há listas não oficiais que circulam pelas redes sociais e causam ansiedade naqueles que ainda não encontraram um ente. Nem sempre o nome realmente está na lista oficial — algo que causa ainda mais desespero.
Às 17h15, o céu, com muitas nuvens, começa a escurecer e três carros de funerárias estão preparados para levar mais corpos para o Cemitério Municipal. Dois dos veículos são da Funerária Memorial da Paz. Vão levar seis corpos, dois de uma família e quatro de outra.
Aos poucos, as pessoas vão indo embora — em mais um dia voltando para casa ou para onde estejam provisoriamente hospedados sem uma resposta. A friagem da serra aperta, e a possibilidade de mais uma noite de chuva volta a assustar os petropolitanos.
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