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Desastre em Petrópolis expõe as dores de uma década soterrada no Brasil
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Em 2011, o futuro parecia irrefreável.
O Brasil que inaugurava a nova década tinha acabado de eleger a primeira mulher presidente. No campo internacional, B de Brasil era a primeira letra de um acrônimo a reunir países emergentes que prometiam fazer frente à velha ordem mundial. A proposta era sólida como o tijolo do nome, Brics — a reunião de novas potências.
As camadas de pré-sal prometiam garantir não apenas a autossuficiência energética ao país, mas dinheiro ilimitado para os sistemas públicos de saúde e educação. Na mesa do jantar, discutiam-se royalties como quem conversa sobre o placar da rodada.
Em poucos anos receberíamos a Copa do Mundo. Na sequência, as Olimpíadas. O entorno das grandes obras deixariam legados padrões Fifa, como as arenas a serem construídas e/ou reconstruídas para o espetáculo. Um trem-bala ligaria o Rio a São Paulo e as linhas de metrô nas megalópoles deixariam os passageiros em segurança nas estações conectadas aos aeroportos.
O mundo voltava os olhos para cá. Distantes, finalmente, do mapa da fome, ostentávamos o selo de investimento como um ingresso a um tempo de bonança.
Até que veio a chuva.
No país que aboliu a metáfora, como não cansa de repetir minha amiga Camila Kfouri, a literalidade dos destroços deixados pelo mar de lama na região serrana do Rio, a 70 quilômetros da capital — àquela altura já enfeitada para a festa —, não deixou espaço para se ouvir as mensagens contidas nos alertas ignorados das sirenes e dos mapas das áreas de vulnerabilidade. A única urgência era salvar e se salvar. E enterrar os quase 1.000 mortos pelas chuvas e deslizamentos. Muitos até hoje seguem desaparecidos.
A tragédia na região serrana do Rio, logo nos primeiros dias de 2011, já alertava sobre o que acontece quando os planos do futuro estão fincados em areia movediça. Ali, os sedimentos da história se moviam silenciosamente. Quando o dique se rompeu, as águas fétidas desnudaram um país construído na base do atraso, da negligência e da omissão.
Nesse país de desigualdades gritantes, a chuva, como o sol, é para todos — mas só alguns estão condenados a morrer no curso das águas. Os que, ao serem atingidos, têm fichada como causa mortis a suposta falta de visão do futuro, já que construíram suas casas em áreas de risco. O Estado que falhou em prover alternativas é o primeiro a desviar o corpo das pilhas de corpos.
Entre 2011 e 2022, aquele país de expectativas estratosféricas foi, pouco a pouco, engolido pela força das águas mal contidas em nossas gambiarras físicas e históricas. Aconteceu em Mariana. Aconteceu em Brumadinho. Mais recentemente, no sul da Bahia, na região metropolitana de São Paulo, e novamente em Minas Gerais, onde os casarões históricos, agora, são lembrança de um tempo devidamente apagado.
As tragédias evitáveis certamente seriam contidas se aquele salto prometido em direção ao futuro tivesse contido, em sua rota de voo, os solavancos obscurantistas promovidos pelas elites do nosso atraso. Em Petrópolis, por ironia macabra, nem a única livraria da Cidade Imperial sobreviveu à força da lama. O futuro é uma pilha de livros transformados em barro. O passado, por sua vez, é literalmente um museu de prejuízos ainda não calculados pelos órgãos de proteção ao patrimônio — surrado antes e depois da passagem das águas.
Não, não é preciso muito para educar uma população e seus dirigentes a entenderem as sirenes do desastre. A cumprirem protocolos de evacuação. A monitorarem os sistemas de alerta e mudanças meteorológicas. E levarem a sério a implementação de obras simples de contenção e canalização, projetos de moradia, urbanização.
Mas as verbas para projetos do tipo foram gastas em publicidade e festas natalinas.
O desprezo pelo estudo técnico que mapeou, já em 2017, as áreas de risco que certamente seriam engolidas pelas próximas chuvas (como foram), seriam a metáfora perfeita, não fosse sua gritante literalidade, de um país que desdenhou das ferramentas de produção de conhecimento — a começar pelas bolsas de pesquisas e ataques sistemáticos a professores e universidades, em nome da fé. A fé paralisante de quem olha para o céu carregado de nuvens e não pede perdão, mas misericórdia.
As ferramentas da construção de sujeitos da história, atentos e ativos, foram surrupiadas por quem não tinha mais a apresentar como solução, senão o próprio charlatanismo.
O que foi a pandemia, por aqui, se não um mar de dejetos em direção às nossas cidades ignorantes de todos os alertas sobre a contenção do vírus, da importância do uso da máscara ao apoio à vacinação, passando pela testagem em massa, as regras de distanciamento social e a premissa de que não há país a ser reconstruído se estivermos, nós também, soterrados?
As barragens dos acordos históricos mal desenhados, a começar pela Anistia e as vistas grossas aos porões da tortura, também se revelaram uma grande gambiarra ao se romper, libertando dos diques do ressentimento os afetos mais violentos. No caminho dos dejetos estavam pessoas como Moïse Kabagambe, espancado até a morte em um quiosque da Barra da Tijuca, aos corpos de jovens encontrados no mangue após uma operação policial no Complexo do Salgueiro. Estavam um país inteiro.
De dez anos para cá, os pactos civilizatórios foram engolidos pela força das águas barrentas que uniram na mesma correnteza o desejo de expansão predatória ao ódio a quem está no caminho. Dos índios à mata preservada. Passando pelas instituições de proteção e regulação das forças desproporcionais do trabalho.
Refeita como remake de um filme macabro, mais de dez anos depois, a tragédia das águas na região serrana do Rio revela não apenas uma década perdida, em termos sociais e econômicos. Revela uma década soterrada. E isso também não é uma metáfora.
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