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Matheus Pichonelli

Falta de ar em Manaus é o retrato macabro de um país que aboliu a metáfora

14 jan. 2021 - Médicos atendendo paciente com covid-19 em Manaus, Amazonas - BRUNO KELLY/REUTERS
14 jan. 2021 - Médicos atendendo paciente com covid-19 em Manaus, Amazonas Imagem: BRUNO KELLY/REUTERS

Colunista do UOL

15/01/2021 10h48

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Não é a primeira e, lamento, não será a última vez que cito o diagnóstico da amiga Camila Kfouri em uma postagem no Facebook no já distante 2016: "o Brasil não é um país de metáforas".

Metáfora, para quem faltou à aula, é a figura de linguagem que produz sentidos figurados por meio de comparações. É o que permite dizer que estamos um "caco" sem nos converter, necessariamente, em fragmentos de garrafas de vidro.

Só que no Brasil os sentidos literal e metafórico se amalgamam na travessia do absurdo. A ponto de a expressão "mar de lama" soterrar a alegoria junto com as vítimas e rastros de destruição das barragens mal construídas, como em Mariana e Brumadinho.

Aqui, epidemia de "zica" não é sinônimo de má sorte, mas um drama para infectados com o vírus homônimo.

Na postagem, a Camila lembrava também o projeto "Ponte para o futuro", jogada de marketing do governo Michel Temer (MDB), lançado no momento em que um prefeito do mesmo partido tentava explicar o desabamento de uma ciclovia em uma ponte no Rio de Janeiro.

Alguns anos se passaram desde então. E pouca coisa mudou, a não ser para pior.

Neste país que aboliu a metáfora, a falta de oxigênio já não é sinônimo de cansaço, sufoco, necessidade de renovação, mas de asfixia literal, física e dolorosamente real sofrida por quem precisou ser internado em meio a um novo surto de coronavírus em Manaus e não encontrou, no leito hospitalar, cilindros capazes de restabelecer o sistema respiratório atingido pelo vírus.

Desesperadores, os relatos de profissionais da área sobre a situação demonstram uma catástrofe de proporções amazônicas. O oxigênio acabou em instituições de referência, como o Hospital Universitário Getúlio Vargas. Estima-se que uma ala inteira de pacientes morreu sem ar. Um gestor comparou o espaço inicialmente dedicado ao tratamento de pacientes a uma câmara de asfixia.

Essa câmara foi construída pela argamassa da ignorância e do descaso das autoridades públicas, que nada fizeram para controlar a propagação do vírus quando a segunda onda de contaminação já não era sentido figurado nem questão de "se", mas de "quando" chegaria.

Wilson Lima (PSC), governador do estado, chegou a decretar lockdown no momento mais crítico, mas a medida foi alvo de boicote de políticos e grupos bolsonaristas que desdenham os riscos da doença desde o início — e chamam isolamento social e até uso de máscara de "loucura" ou "atentado às liberdades individuais".

O caos é, portanto, resultado direto do limbo e do bate-cabeça entre autoridades que não falam a mesma língua, deixando médicos e equipes de saúde atordoadas com orientações políticas conflitantes.

Para Eduardo Pazuello, ministro da Saúde que pode ter enviado precocemente um avião até a Índia para adquirir vacinas que talvez não existam no estoque, a culpa da tragédia em Manaus é da chuva, que umidifica o ar e causa problemas respiratórios, da falta de estrutura hospitalar da região e da ausência do "tratamento precoce", uma fantasia já desnudada por 10 em cada 10 profissionais sérios de saúde.

Só na capital do Amazonas já morreram quase 4.000 pessoas de covid-19. Quase 300 pacientes buscaram tratamento em um único dia. Resultado: a taxa de ocupação de leitos clínicos alcançou 110% e, como dois corpos não ocupam o mesmo espaço nem em leito hospitalar, as as Forças Armadas precisaram ser acionadas para buscar oxigênio e transferir pacientes. Nada disso seria necessário caso houvesse inteligência, planejamento e comunicação de risco, sem ruído ou sabotagem, para evitar, e não remediar, o colapso.

Em meio ao caos, a sentença "vai pra Venezuela" deixou de ser xingamento em sentido figurado, mas solução para fornecedores suprirem a demanda por oxigênio com a ajuda do país vizinho.

Diante da situação, o governador decretou toque de recolher entre 19h e 6h, e usou uma outra alegoria para expressar a gravidade da situação. "Hoje o estado do Amazonas, que é referência para o mundo, e que todo o mundo volta seus olhares para cá quando há um problema relacionado à preservação ao meio ambiente, está clamando, pedindo por socorro. Considerado por muitos o pulmão do mundo, uma floresta que produz uma quantidade significativa de oxigênio, hoje o nosso povo está precisando desse oxigênio", disse Wilson Lima.

Cientificamente, não é correto dizer que a floresta amazônica é o pulmão do mundo, mas o apelo à metáfora é inevitável no momento em que respirar já não é mais direito básico aos seus habitantes; virou privilégio.

No Brasil, todos são iguais perante o vírus, mas uns são mais iguais que outros quando só alguns têm acesso aos melhores hospitais. Neste país, direitos básicos não dão em árvore nem são fruto da natureza, mas da luta diária (e permanentemente sabotada) por quem deveria garantir o mínimo do mínimo para viver.

Já não é metáfora, nem exagero, dizer que chegamos ao limite.

E o limite é perceber que em 2021 já não falta só comida, casa, educação para boa parcela dos brasileiros. Falta ar.

E falta ar porque quem foi eleito priorizando a morte, o confronto e o acesso às armas desdenhou o risco real de as ondas de contaminação se converterem em morticínio. E jurou que o melhor remédio era a imunização de rebanho e a manutenção da normalidade em tempos de pandemia. O importante era salvar o CNPJ. E quase 210 mil pessoas nunca mais voltaram para suas casas ou empregos.

Para quem tem a necropolítica como plataforma política, a preocupação agora é tirar os mortos do colo. Definitivamente, o Brasil não é um país de metáforas.