Frades se revezam para rezar por mortos e confortar os vivos em Petrópolis
Na morte, cuida-se dos mortos e também dos vivos. Dita pelo frei Marcos Andrade, 54, na porta de uma funerária, a frase resume a motivação dos franciscanos que se revezam em mutirão para as celebrações das exéquias, como são chamadas as encomendações das almas levadas pela tragédia de Petrópolis (RJ).
O mutirão dos frades nas funerárias e capelas mortuárias próximas do Cemitério Municipal de Petrópolis, no centro histórico da cidade, serve de conforto às dezenas de famílias que perderam alguém pela força que derrubou encostas, transbordou rios, demoliu construções e acabou com mais de 130 vidas, segundo os últimos números oficiais. É a primeira vez que os frades se organizam assim para dar conta das despedidas.
"Essa história [a repetição de tragédias naturais] já cansou. As autoridades sabem por que elas acontecem e nada fazem para evitá-las. Resta ao povo sofrer. E a nós, religiosos, levar a palavra de Deus e algum alento", diz frei Marcos, paulista de Sorocaba formado no seminário de Guaratinguetá. Ele vive há 11 anos em Petrópolis, onde está à frente da organização dos velórios das vítimas das chuvas.
A cidade tem dois cemitérios. Além do que fica na região central, há um menor, no distrito de Itaipava. Como quase todas as mortes aconteceram no primeiro distrito, praticamente todos os sepultamentos estão sendo feitos no cemitério central. O quartel-general, por assim dizer, do mutirão dos frades fica no convento da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, a poucos metros das funerárias e capelas mortuárias.
Para atender às famílias em luto, frei Marcos montou uma escala de 22 religiosos. Divididos em equipes de dois ou três, ficam nas portas das três funerárias que reúnem 15 capelas mortuárias. O hábito marrom, comum entre os frades da Ordem de São Francisco, facilita a identificação e, consequentemente, a aproximação com as famílias. Momentos depois, ao fim do velório, um deles vai à capela para a oração final.
Marcos diz que nunca viveu situação igual. Em 2011, quando chegou a Petrópolis, foram 71 mortes, e a tragédia e os sepultamentos se concentraram em Itaipava (no total, quase 1.000 pessoas morreram em toda a região serrana). A catástrofe recente, lembra frei Marcos, tem mais um componente dramático: há muitas crianças entre as vítimas.
"Nada se compara ao momento atual, nem o auge da pandemia de covid-19, entre março e abril do ano passado, quando tivemos uma média de 15 sepultamentos por dia", diz o religioso. "Agora, os velórios são de três, quatro e até cinco pessoas da mesma família."
Vítimas ainda no IML
Nesta sexta-feira (18), o Cemitério Municipal de Petrópolis receberia cerca de 20 sepultamentos (a prefeitura local interrompeu a contagem às 16h15, com 17 sepultamentos). A maior parte das vítimas ainda não foi liberada pelo IML (Instituto Médico Legal), o que deve estender o mutirão dos frades.
Na paróquia dos franciscanos, o dia sempre começou cedo, mas não como agora, ainda na madrugada. Isso porque, além dos velórios, os frades também recebem e distribuem doações aos desabrigados, trabalho coordenado por frei Augusto Luiz Gabriel, 27, há quatro anos em Petrópolis. O entra e sai de quem quer ajudar e de quem precisa ser ajudado é constante, das 8h às 18h. "Nós nos revezamos entre as exéquias nas capelas e as doações. Não há descanso", diz frei Augusto, natural de Xaxim (SC).
Pela escala montada por frei Marcos, a cada hora e meia, os religiosos de plantão retornam à paróquia para o descanso emocional. Até as 18h, não há momento de pausa absoluta, de trégua para o corpo, porque o tempo é preenchido com as tarefas da campanha de doações de alimentos e roupas para os afetados pela enchente.
Nas funerárias, as tarefas das duplas ou trios de frades seguem basicamente a mesma ordem. Há um lado prático: eles precisam preencher as "fichas de encomendação", com dados pessoais e o horário do sepultamento da vítima (informações usadas depois nas celebrações religiosas nas capelas). É um lado mais humano, de exercício espiritual e de empatia, para levar conforto a quem se despede de alguém para sempre.
"Às vezes, por mais que a serenidade seja necessária, me faltam palavras, mesmo durante a oração. Porque as pessoas que estão ali, vítimas dessa tragédia, são como da minha família e, de fato, poderiam ser da família de qualquer um de nós", diz frei Douglas Brito, 34, nascido em Campo Grande (MS) e há um mês e meio em Petrópolis.
Morte e abandono
Nem quem deveria estar preparado para consolar passa incólume por um momento assim. Nas duas vezes em que esteve nas capelas mortuárias na sexta-feira (18), frei Jefferson Danilo, 28, emocionou-se ao abraçar pais, mães, amigos, irmãos e filhos de vítimas.
"O momento mais sensível, de maior fragilidade, é quando a pessoa depara com o ente amado no caixão, a morte ali materializada, e procura num abraço, do religioso ou de qualquer outro, o acolhimento que lhe resgate do sentimento de abandono", afirma Jefferson.
Aliás, na situação extrema enfrentada pelas famílias da tragédia de Petrópolis, nem o distanciamento exigido pela pandemia de covid-19 é capaz de impedir o abrigo em forma de abraço. Acolhida, inclusive, de gente que veio de muito longe, do outro lado do Atlântico.
Em Petrópolis desde maio de 2021, os frades Evaristo Seque Joaquim, e Pedro Mogiba, ambos aos 28 anos, deixaram Angola para estudar no Instituto Teológico Franciscano. Ontem (18), a dupla participava do mutirão religioso na Funerária Oswaldo Cruz.
Vindos do país devastado por quase 30 anos de guerra civil, Evaristo e Pedro se diziam impressionados com o tamanho da destruição em Petrópolis — maior, segundo eles, do que a enchente que em 2015 devastou Lobito, cidade litorânea de Angola, e deixou mais de 60 mortos.
"A dor das famílias de Petrópolis é a mesma das famílias de Lobito ou de outra cidade impactada por uma catástrofe natural. Tentamos fazer aqui o que procuramos fazer lá, aliviar os corações dos que sofrem", diz Evaristo.
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