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Diretora de 'Carro Rei': Nordeste é muito mais cosmopolita do que se pensa

Quando foi realizada a Semana de Arte Moderna, entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, o cinema ainda engatinhava em um país que também se modernizava. Cem anos depois, é difícil dissociar o movimento organizado por Oswald de Andrade, Mário de Andrade e companhia dos ideais de nação e ruptura propostos pelos cineastas brasileiros nas décadas seguintes. A começar pelo Cinema Novo.
Desde o ano passado, São Paulo recebeu ao menos duas grandes mostras dedicadas a trabalhos que dialogam com esses ideais modernistas. Uma delas foi realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (a partir de março, a mostra segue para Rio e Brasília). Outra ocorreu em dezembro, no Sesc-SP, e selecionou produções recentes que, segundo a curadoria, repensam temas que já apareciam em 1922.
Entre os filmes selecionados estava "Carro Rei", longa da pernambucana Renata Pinheiro, protagonizado por Matheus Nachtergaele, que tem empilhado prêmios nos festivais por onde passou —a previsão é que entre no circuito comercial em junho, mas na quinta-feira (3) ele será exibido gratuitamente na plataforma Sesc Digital durante 24 horas.
Em conversa com a coluna, a diretora conta que as temáticas discutidas no longa dialogam com o modernismo, ao trazer para o centro da cena uma geografia nordestina já cosmopolita — e não parada no tempo, como muitos ainda a pensam.
"Quando fiz o curta-metragem 'Praça Walt Disney', com Sergio Oliveira, descobrimos o quanto o país ainda via o Nordeste brasileiro pela ótica parnasiana e acadêmica. O mesmo aconteceu quando realizamos o documentário 'Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos'. Em ambos os filmes, fizemos um livre pensar audiovisual sobre uma terra e uma cultura que, ao contrário do que se propaga, não são puras, já são cosmopolitas. Não é o último bastião de uma brasilidade parada no tempo", conta.
Pinheiro lembra que o baião e o xote, por exemplo, têm grande influência da valsa e da mazurca, respectivamente.
"Para filmar 'Carro Rei', escolhemos Caruaru, uma cidade média brasileira formada por imigrantes, uma cidade que se fundou na gambiarra, numa feira, assim como Campina Grande, Arapiraca, Vitória da Conquista. Essas temáticas são herdeiras do modernismo e dialogam muito com o nosso trabalho, na escolha de uma geografia já cosmopolita. De lugares que podem e devem ocupar um pensar do mundo", resume.
Para ela, a Semana de 22 e seus desdobramentos foram um marco que influenciou toda a cultura brasileira. "Foi um gerador de ideias que, mesmo inicialmente calcado nas vanguardas europeias, fomentou expressões artísticas brasileiríssimas que rompiam com um formalismo acadêmico vigente."
Sobre a revisão em curso a respeito dos protagonistas da semana, hoje criticados por expressarem um certo elitismo paulista, ela afirma que os meios de produção para o evento acontecer provinham de São Paulo, um estado já muito pujante economicamente, que tinha fome de inaugurar, mapear e deglutir um país através do seu olhar. "Poderia ter sido outro lugar, mas é inegável que a força da grana, desde o princípio do mundo, delineia uma cultura e a reinaugura, reinventa. Essa mesma Semana inaugural era composta por artistas de vários lugares como Manuel Bandeira [pernambucano] Villa-Lobos [carioca] e que tinham, juntos aos seus pares paulistas, a mesma intenção de fundir influências externas aos elementos artísticos brasileiros, numa busca identitária nacional. Esse mesmo fenômeno aconteceu em outros países, como na Argentina de Xul Solar", afirma.
Para a cineasta, ser modernista hoje seria anacrônico, mas o legado deixado pelo movimento pode ser observado em vários aspectos das artes contemporâneas. Ela cita como exemplo a observação mais aguda do cotidiano, a prática de uma sintaxe brasileira ("que aglutina elementos de outras culturas, nativas ou não") e a visão mais crítica e abrangente da formação do país.
Perguntei a ela como esses artistas que hoje quebram padrões serão lembrados daqui a cem anos. "Prefiro dizer dos artistas que há 40, 50, 60 anos eram alvo de críticas ou ignorados e hoje são celebrados, como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro na música, Andrea Tonacci e Ozualdo Candeias no cinema, Vitalino e Galdino na escultura."
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