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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Danilo Gentili virou alvo dos mesmos monstros que ajudou a alimentar

Presidente Jair Bolsonaro participa do "The Noite", com Danilo Gentili - Gabriel Cardoso/SBT
Presidente Jair Bolsonaro participa do "The Noite", com Danilo Gentili Imagem: Gabriel Cardoso/SBT

Colunista do UOL

16/03/2022 04h00

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A Secretaria Nacional do Consumidor, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, determinou que os serviços de streaming suspendessem, sob pena de multa diária de R$ 50 mil, a exibição do filme "Como se tornar o pior aluno da escola", baseado no livro de Danilo Gentili.

Com a decisão, o ator e humorista foi colocado no centro de uma trincheira que ajudou a cavar durante anos: a trincheira da guerra cultural. Em ano de eleições, essa guerra promoverá ruídos intensos toda que vez que o governo federal se enroscar para explicar o preço da gasolina, a inflação da cesta básica, o orçamento secreto, as rachadinhas, os vexames diplomáticos, os mortos pela covid e a tragédia ambiental.

A exemplo do que aconteceu em 2018, as armas serão apontadas contra inimigos tão perigosos como imaginários, como o tal "kit gay" e as mamadeiras com formatos estranhos que jamais foram distribuídos pelos proclamados inimigos da família brasileira. É um jogo sórdido, mas conhecido. Quem entrar em campo sabe que precisa levar caneleiras.

Se teve uma estratégia que de fato funcionou no atual governo foi a asfixia das políticas de incentivo à cultura. Não se vê, como antigamente, senhores e senhoras de Santana munidos de lupas para identificar supostas perversões em filmes, peças e instalações produzidos com verbas públicas ou decorrentes de renúncia fiscal.

Sobraram para as plataformas de streaming, para as quais, de quando em quando, os cruzados miram suas lanças. Recentemente, Damares Alves, ministra da Família, conseguiu criar caso apontando um suposto incentivo à sexualização precoce em um filme da Netflix que criticava a sexualização precoce.

Há quem desconfie que a ministra não viu o filme até o fim. Ou que não tenha entendido a mensagem. Ou que, vendo e entendendo, achou que seria uma boa oportunidade para recortar e tirar do contexto uma passagem do longa e conseguir nas redes o oxigênio que move a turma: mobilização e engajamento. Tudo com base no estímulo ao medo, quase sempre transformado em ódio, das multidões.

Não teve artista que desde o começo se posicionou contra o governo que não tenha apanhado da turma em algum momento.

A novidade deste ano é que as lanças já não reconhecem quem é inimigo e quem é antigo aliado.

Foi o que descobriu Danilo Gentili ao ser acusado de pedofilia desde que seu filme de 2017 entrou no catálogo da Netflix, há algumas semanas.

A acusação veio à tona após alguém gravar e jogar nas redes um trecho em que um adulto sexualmente perturbado interpretado por Fábio Porchat, que também entrou no radar da patrulha, assedia dois garotos. Na cena, os rapazes reagem ao personagem, didática e toscamente pintado como vilão — inclusive na hora de se dar mal.

Mas o recorte da cena, notadamente sem graça (e lá tem graça piada assim?), fez com que o filme passasse a ser interpretado como uma apologia à pedofilia. O suficiente para que o Ministério da Justiça, agora reforçado por um advogado do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) na Secretaria do Consumidor, pedisse a remoção do longa da plataforma.

Gentili chamou o pedido de "cortina de fumaça", um "espantalho" para desviar as atenções em torno de outros problemas, como o aumento dos combustíveis. Ele disse ainda ser alvo de oportunismo e censura.

O humorista talvez tenha percebido tarde demais que o grande problema de, em algum momento da vida, apoiar fãs da ditadura é a impossibilidade de mudar de ideia sem riscos de se tornar uma vítima dela.

Antes de ser alvo dos desafetos, ele cansou de promover linchamentos virtuais, como fez com um repórter da Folha de S. Paulo ao ler um texto sobre seu filme que não lhe agradou, e ataques de todo tipo. Certa vez, ao receber a notificação de uma ação judicial movida pela então deputada Maria do Rosário, xingada pelo comediante nas redes sociais, ele rasgou o documento e guardou na cueca. Ele também arrancou suspiros dos fãs ao distribuir ofensas gordofóbicas contra a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP) e contra a atriz Thais Carla.

Os episódios em que se comportou como moleque brigão de colégio são inúmeros. O pior deles talvez tenha sido contra uma mulher que ousou desconfiar de sua inteligência no Twitter. Gentili a chamou de "chupadora de rola de genocida corrupto", para aplausos dos amiguinhos da nova direita, uma manada na época disposta a obedecer suas ordens: "Fanzocas a xingue (SIC) de puta".

Seus atuais detratores não criaram nenhuma hashtag em defesa da vítima. Nem quando ele de fato fez apologia ao estupro ao chamar de gênio "o cara que esperou uma gostosa ficar bêbada para transar com ela".

Na época, Gentili era ídolo da turminha do barulho que acredita (ou finge acreditar) que o grande problema do mundo hoje é a ditadura do "politicamente correto". Entre os fãs estava o deputado e pastor Marco Feliciano, que rasgou elogios publicamente ao filme durante seu lançamento e, agora, diz que estava ao telefone bem na cena na qual que ele e seus amigos do gabinete do ódio identificaram o elogio à pedofilia.

Em tempo: a turma que agora carrega as chamas e os tridentes é a mesma que persegue e tenta invadir o hospital onde uma criança vítima de estupro decide interromper a gravidez, resultado de anos de abusos promovidos por um familiar.

A cena de Gentili talvez passasse batida pelos olhos do bolsonarismo e seu ministro da Justiça se o humorista tivesse em seu avatar o slogan "Deus acima de tudo".

Ex-apoiador do presidente, a quem deu palanque em seu programa de TV quando ele era ainda um deputado que só falava, não produzia (ainda), absurdos, Gentili mudou de ideia. Já afirmou que o governo é uma porcaria e que Bolsonaro não cumpre o que prometeu. As pedras que distribuía em consonância com o capitão agora acertaram sua vidraça — e fez até o cantor e guitarrista Roger Moreira entrar em parafuso ao tentar decidir se apoiava o colega de trabalho ou o ídolo que agora reina em Brasília.

"O pedófilo é um vilão no filme. Estão fazendo tempestade em cima de uma visão distorcida. Não se sabe nem se é contra Danilo, contra a Netflix ou contra o Porchat. Contra a pedofilia o filme também é. Talvez devesse ser proibido para menores de 18, mas não sou eu o censor", escreveu Roger em seu Twitter.

O roqueiro e o amigo, assim como os rapazes do MBL e outros influencers que já cantaram em coro com o gabinete do ódio, acabam de descobrir na pele um ponto de não-retorno quando se naturaliza projetos de autocracias: "tu te tornas eternamente responsável pela besta que alimentas". Inclusive quando os dentes se voltam para eles.