Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Cancelar Dostoiévski para alvejar Putin é exatamente o que parece: burrice
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O prefeito de Florença, Dario Nardella, recebeu pedidos para derrubar uma estátua na cidade em homenagem ao bicentenário de Fiódor Dostoiévski. A obra foi doada pela Embaixada da Rússia.
O ato contra a memória do escritor russo seria uma manifestação de repúdio da cidade italiana à invasão ordenada por Vladimir Putin à Ucrânia.
Dias antes do ocorrido em Florença, a Universidade de Milão-Bicocca anunciou o cancelamento de um curso sobre o autor (e depois voltou atrás). Em Gênova, um festival dedicado ao escritor foi cancelado devido ao patrocínio do Consulado Russo na cidade.
Se a guerra durar muito mais, é possível que em dez anos ninguém mais saiba quem foram os irmãos Karamazov, Raskólnikov e outros personagens do universo de Dostoiévski. Tudo porque, conforme resumiu o prefeito de Florença, em algum momento da história as pessoas confundiram "uma guerra louca de um ditador e seu governo" com um conflito de um povo contra o outro. Nardella desafia: que tal, "em vez de apagar séculos de cultura russa, pensemos em como parar Putin rapidamente?"
Em uma aula recente, o filósofo Flávio Ricardo Vassoler, que da iniciação científica ao pós-doutorado já dedicou 17 anos de vida estudando a obra de Dostoiévski, questionou quem perde com o cancelamento de um autor morto há 141 anos.
Para ele, uma universidade que pretende censurar um escritor desse quilate está censurando a si mesmo e a seus alunos. Ler Dostoiévski e outros autores russos, como Tolstói e Tchékhov afirma o filósofo, é um direito humano. "Como alguém pode confundir um governo, uma política de Estado, com a cultura de um país?", perguntou ele a seus alunos.
Alguém poderia imaginar que se fizesse o mesmo com um autor igualmente fundamental como o italiano Dante Alighieri?
Para Vassoler, a hostilidade só agudiza a "russofobia", um preconceito que grassa no Ocidente para subestimar a Rússia e associá-la a um país atrasado e subalterno, o que não corresponde à verdade — e nem impede de criticar, como o professor tem feito em suas aulas, os absurdos promovidos pelo governo Putin.
Vassoler divide sua vida em antes e depois de Dostoiévski. E, nos cursos dedicados ao autor, ele costuma ouvir dos alunos que seus livros também mudaram seus parâmetros de pensamento. "Ele é um autor ecumênico, polissêmico", descreveu.
O mesmo se pode dizer de cineastas russos, como Andrei Tarkovsky, que ele também teme que sejam impactados pela nova onda de cancelamento.
Enquanto a guerra não acabar, países, empresas e organizações sediadas no Ocidente, inclusive esportivas, prometem manter o boicote à Rússia, que não disputará sequer a Copa do Mundo no Qatar no fim do ano. Produções que tenham apoio estatal já não podem ser apreciadas em festivais de cinema e música. Nem mesmo o novo filme do Batman poderá ser exibido na Rússia até que as tropas do país saiam da Ucrânia.
As sanções servem para jogar a própria população contra o governo que transformou o país em pária. Pode-se discutir o efeito e a coerência das medidas (outros países autoritários não sofreram medidas semelhantes após agredirem seus povos e outras nações), mas a estratégia tem sido aceita como uma forma de convencer Putin a recuar.
Tentar apagar a memória contida na vida e na obra de artistas como Dostoiévski e fazer com que todo cidadão russo se envergonhe pelo simples fato de ter nascido em seu país beira a loucura — um estado de tormento que só mesmo os grandes autores como ele poderiam destrinchar.
Inclusive para entender os ditadores do novo século.
Afinal, todas as pessoas espontâneas e de ação são de ação por serem estúpidas e limitadas. Por acaso uma pessoa consciente pode ter algum respeito por si mesma? O que fazer se o destino patente e único de toda pessoa inteligente é a transferência intencional do deserto para o vazio?
Quem pergunta não sou eu.
É o personagem perturbado de "Memórias do Subsolo", escrito por um autor prestes a ser cancelado. Corra para ler antes que alguém queime o livro na fogueira na tentativa de salvar o mundo de sua perversão.
Em tempo. Ao fim desse texto, soube que já tem bar disposto a cancelar até a gastronomia russa em protesto contra as bombas. O esforço de guerra tirou da nossa mesa, ao menos temporariamente, o bom e velho estrogonofe. Se isso não fizesse Putin temer, o que faria?
Em tempo 2. No texto original, escrevi que retirar a estátua de Dostoiévski da cidade italiana equivalia a fazer o mesmo com o Cristo Redentor durante a Guerra da Lagosta, momento de tensão entre Brasil e França, nos anos 1960. Erroneamente, falei que a obra tinha sido um presente da França para o Brasil, mas não foi, embora a construção tenha contado com a parceria de um escultor e um engenheiro franceses. Houve também quem criticou a comparação daquela crise diplomática com o que está acontecendo hoje em território ucraniano. Os leitores que apontaram o erro e o despropósito têm razão. Por isso o trecho foi suprimido.
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