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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ainda vamos levar um tempo para reaprender a andar pelo mundo sem máscaras

Máscaras da Covid liberadas em SP e no Rio - Imagem: Unsplash/Reprodução
Máscaras da Covid liberadas em SP e no Rio Imagem: Imagem: Unsplash/Reprodução

Colunista do UOL

13/03/2022 04h00

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São Paulo e Rio de Janeiro retiraram a obrigatoriedade do uso de máscaras em lugares abertos e eu só consigo pensar nos versos da Tabacaria, de Álvaro de Campos, um dos muitos heterônimos de Fernando Pessoa. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido.

Há mais ou menos dois anos, voltei de uma viagem para fora do país e lembro do estranhamento ao observar os estrangeiros indo e voltando de máscaras com suas bagagens pelo aeroporto. Parecia um exagero.

Pouco depois, a Organização Mundial da Saúde anunciou a pandemia e recomendou que ficássemos em casa até segunda ordem. De lá só sairíamos com elas, as máscaras que passaram a definir nossas personalidades e posições políticas. Usar ou não a peça de proteção se tornou uma resistência ou uma provocação.

Quem não se lembra daquele dirigente esportivo que no meio de uma entrevista constrangeu o repórter de uma rádio ao vê-lo protegido de seus perdigotos? "Nós somos Bolsonaro, para com esse negócio, tire a máscara", provocou.

Não teve quarentener que não vivenciou situação semelhante. O constrangimento de pedir para alguém usar o equipamento era recorrente, e muitas vezes descambou para a agressão. Sintomas de um país que adoecia a passos largos.

O fato é que a pandemia alterou nossa forma de estar no mundo — não só porque nossas casas viraram, e para muitos ainda são, nosso mundo onde se condensam as áreas de lazer, trabalho, descanso, namoro.

Quando criança, um pesadelo recorrente me lançava para o meio da sala de aula apenas de cuecas. No sonho, só percebia o vacilo quando levantava para fazer uma pergunta e todos os colegas começavam a rir, desesperadamente. No auge da quarentena, esse pesadelo mudou de contexto. Certa vez, por muito pouco não fui de fato flagrado só com a íntima indumentária ao sair do banho e cruzar desatento a câmera do computador que lançava meu filho para dentro da sala de aula. A algaravia das crianças era a mesma, só mudava(m) o(s) endereço(s).

Mas terror mesmo passou a ser um sonho comum no qual me encontrava em um elevador de hotel, quase sempre a trabalho, e me deparava com uma multidão ao ver as portas se abrirem. Pelo espelho de um saguão, descobria que eu era o único dali sem máscara, o que explicava a profusão de olhares de reprovação, como se meu corpo fosse exposto na mais indigente intimidade.

Geralmente acordava molhado de suor, gritando que não, não era como aqueles caras da cloroquina, eu só tinha esquecido a máscara em um canto do quarto. Tentava correr para buscá-la, mas quanto mais corria, mais tropeçava, e quanto mais tropeçava, mais o chão se abria, mais vergonha passava.

Além do medo de sair sem máscara, a pandemia me deixou mais atento (mais sensível?) a ruídos. Sei quando a vizinha liga e desliga a bomba da piscina, colada na parede do meu quarto. Cortadores de grama agora parecem um helicóptero tentando pousar em minha cabeça. E transitar novamente no mundo fora de casa é transitar numa cápsula gelatinosa na qual pareço ter desaprendido, pela falta de hábito, os ritos e as liturgias de outros tempos. Como usar o cartão de débito? Onde guardar a carteira? Quanto tempo leva para o semáforo abrir? Meia azul combina com chinelo Havaianas?

O pior mesmo é manter o contato visual numa conversa de mais de um 10 segundos. Como falar sem poder borrar minhas costas com uma boa imagem de fundo?

De certa forma, as máscaras eram quase um escudo nesse momento de transição, embora jamais tenham conseguido proteger o que costumamos dizer pelos olhos. Mas já era alguma coisa.

Nos primeiros meses da pandemia, achava que a saudade de outros tempos e presenças poderia ser tão fatal quanto um vírus. Não era. Não foi de saudade que morremos.

Achava que iria correr para ver todo mundo na primeira oportunidade, quando recebesse minhas doses de vacina ou quando as autoridades anunciassem que poderíamos finalmente circular sem máscaras.

Mas não quis. Não quero. Não agora.

Não porque me acostumei a viver ausente, mas porque não passamos ilesos ao excesso de intimidade e convívio forçado, diário, produzidos no confinamento das videochamadas, dos grupos de WhatsApp, dos Stories e das timelines.

Ali muita coisa foi dita no calor do momento. Havia um mundo em colapso e não faltou gente apontando o dedo sobre quem tinha mais culpa do que quem.

A hostilidade é o efeito-rebote do ressentimento. E andamos todos ressentidos. Não tem como ser diferente ao saber que aquele mundo para o qual nos preparamos a vida toda, com alguma esperança indenizatória, simplesmente deixou de existir. Livros, projetos de pesquisa, viagens, filhos, compra da casa própria.

Tínhamos muitos planos para "quando tudo isso passar" e quando tudo isso começou a passar, ou parou de piorar, encontramos um mundo definhado. Os sonhos esbarram agora numa prateleira de supermercado onde o café é vendido a R$ 22.

O saldo e as marcas dos estragos ainda não foram calculados. No meio dos escombros muita coisa foi dita e muita não foi digerida. Minha expressão facial, agora nua de qualquer tecido, me denuncia. Como tampar meu desgosto sem minha boa e velha máscara?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL