Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Fome está mais perto de nós. E é preciso cobrar os verdadeiros responsáveis
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A advogada Marina Gadelha escreveu em seu Twitter que a diarista pediu a ela R$ 120 adiantados da faxina para poder comprar um botijão de gás. Ao chegar ao trabalho, a mulher pediu para comer algo. Estava com a barriga vazia desde a véspera. "A fome está mais perto do que imaginamos", concluiu Gadelha, em tom de alerta.
Recebi a mensagem com o print de uma invertida que a advogada tomou, por ter usado a expressão "minha diarista" no post. "Essa sensação de ser dono das pessoas pertence à classe privilegiada, responsável pela fome."
A resposta atravessada viralizou. Palmas. Aplausos. Gadelha era agora a responsável pela fome no país.
Confuso, fui até reler a postagem, na qual Gadelha contava inclusive ter depositado o valor pedido via PIX.
Um cliente que tivesse lido a postagem certamente teria comentado que possivelmente já usou "sua advogada" — como ela provavelmente já se referiu ao "meu / minha médico (a)", "meu/minha professor (a)", "meu/minha gerente de banco" e por aí vai.
Notei, então, que as publicações em seu Twitter estavam trancadas, talvez em razão dos ataques recebidos naquela rede.
A linguagem nem sempre (quase nunca) é neutra, e de fato há mais coisas entre a relação do trabalho doméstico e seus patrões do que supõe a empatia desses últimos.
Mas desconfio que o problema relatado pela advogada em seu post é um pouco mais grave que o uso correto do pronome.
A fome, quando ataca, muda o sentido de urgência das coisas. Ou deveria. E, até onde entendo, ela fez o que estava ao seu alcance — outros talvez preferissem responder à profissional que ela poderia se esforçar um pouco mais para conseguir seus objetivos, no caso, a janta.
Sim, a fome está mais perto do que imaginamos. Ou do que imaginávamos há alguns anos, quando o desembarque do país do Mapa da Fome parecia uma conquista irreversível. Não era.
Para quem passou os últimos meses em casa por causa da pandemia e só agora começa a circular, tem sido assustador notar o número de pessoas oferecendo todo tipo de produto, performance ou serviço em cada esquina. Cenas comuns no fim dos anos 1980 voltaram a redesenhar nossas cidades. Hoje é praticamente impossível atravessar o portão de qualquer mercado sem ser abordado por alguém faminto.
O preço do gás tornou a vida de muita gente inviável, o que mostra a limitação dos programas instituídos pelo atual governo para minimizar os efeitos do empobrecimento do país.
O valor do Auxílio Brasil, benefício com data e hora para acabar (ao fim da eleição), é de R$ 400. O reajuste no preço do gás já consome um quarto desse valor. O restante é corroído por itens básicos de cozinha, a começar pelo óleo.
Em ano eleitoral, há uma tensão evidente com a escalada inflacionária, sobretudo no preço dos alimentos, como carne, café e leguminosas.
Em novembro de 2021, o governo anunciou que concederia bimestralmente o valor de 50% da média do preço de referência do botijão para famílias com renda per capita menor ou igual a meio salário mínimo.
Ok. Mas se fizer uma faxina em cada dia útil da semana, a diarista citada pela advogada já não teria acesso ao benefício. Caiu num limbo do qual é difícil sair sem pedir ajuda.
A invertida "instagramável" tomada pela advogada mostra que já chegamos naquele capítulo do "Ensaio sobre a Cegueira" em que, na incapacidade de cobrar os verdadeiros culpados pela crise, gastamos nosso tempo e energia destroçando e construindo trincheiras contra quem poderia ser aliado ou aliada.
Enquanto incorporamos na vida real a distopia de José Saramago, segue reinando no governo um ministro da Economia que esperneia ao saber que a empregada podia viajar para a Disney. É o mesmo ministro que queria distribuir sobras da classe média para os pobres, que para ele não só não sabem economizar como são os responsáveis pela destruição do meio ambiente.
Aprender a direcionar o revide para quem de fato merece é a primeira etapa para o que hoje se apresenta como utopia: imaginar o dia em que ninguém precise vender a janta para pagar o gás.
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