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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cortina de fumaça sobre Gentili encobriu pérola na Netflix: 'Transversais'

Caio José, personagem do filme "Transversais" - Juno Braga e Linga Acácio/Divulgação
Caio José, personagem do filme "Transversais" Imagem: Juno Braga e Linga Acácio/Divulgação

Colunista do UOL

20/03/2022 04h00

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Quando criança, o enfermeiro Caio José gostava de ver bombeiros e ambulâncias na TV. "Aquilo despertava uma alegria em mim. Me perguntava: será que posso ser igual a eles? Eu poderia ser um super-herói. Poderia salvar as pessoas".

Anos depois, ele começou a cursar enfermagem para, de fato, tentar salvar uma vida. A da sua avó. Ela morreu quando ele estava no segundo semestre do curso.

Em 2015, o jovem passou na seleção do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Foi quando começou a vestir um dos muitos uniformes dos super-heróis admirados em sua infância. "Amo estar ali. Chegar ao local e saber que eu posso fazer alguma coisa por alguém. Saber que você pode dizer a uma pessoa acidentada: 'calma, sou do Samu', e ela fica calma. Vemos muita coisa feia, mas também muitas coisas lindas. Como o parto dentro de uma ambulância."

Antes de se tornar o que sonhava desde criança, Caio sofreu um acidente de carro. Tinha 19 anos e estava na faculdade. Daquele dia ele se lembra apenas de estar coberto de sangue e vidro enquanto uma tia tentava acalmá-lo. Em seguida, apagou.

Quando acordou, soube que duas pessoas haviam morrido no acidente. A morte passara por Caio sem que ele tivesse cumprido seu papel nessa vida: ser quem ele era.

"Eu ia morrer como alguém que a sociedade queria que eu fosse. Não como alguém que eu sou", disse. Caio decidiu, então, fazer a transição de gênero e se tornar um homem trans. Sua história é contada no documentário "Transversais", que estreou no fim de fevereiro nos cinemas e que pode ser visto agora na Netflix.

Não deixa de ser irônico que o filme tenha chegado ao streaming na mesma época em que a plataforma é atacada por conta de uma cena de um filme menor, uma bobageira inspirada na obra de Danilo Gentili.

Para quem não se lembra, "Transversais" foi o filme citado em uma live de Jair Bolsonaro, em agosto de 2019, como um projeto que deveria ser abortado por sua lente moralizante.

Em um mundo pré-pandemia, o governo recém-instalado não parecia ter muito o que fazer a não ser mobilizar o medo social em torno de fantasmas construídos com suas lentes de aumento. A tática, quase sempre, envolve estimular a violência contra grupos já devidamente violentados.

Foi o que aconteceu quando o capitão disse ter garimpado na Ancine (Agência Nacional do Cinema) filmes que estavam prontos para captar recursos no mercado e descoberto, vejam só, uma obra que retratava "os sonhos e realizações de cinco pessoas transgêneros que moram no Ceará". "Conseguimos abortar essa missão", gabou-se o presidente.

Assisti ao filme quando chegou ao cinema no fim de fevereiro, quase dois anos e meio após o chilique do presidente. Saí da sessão com a impressão de que era um filme que precisava chegar a mais gente. Um mês depois, estava na Netflix.

Dirigido por Émerson Maranhão, o documentário é uma aula de como tratar um tema delicado e muitas vezes doloroso sem gritar demais nem cair em clichês ou estereótipos. O longa reúne relatos depoimentos de amigos e familiares de personagens como uma estudante que, por pouco, não foi expulsa da escola por causa de sua transição. Fala também de uma professora de matemática que todo dia atravessa um corredor de julgamentos para provar sua competência, de uma servidora pública que lida com a rejeição da família e de um antropólogo dedicado a entender, numa transposição entre sujeito e objeto de estudo, as relações de gênero no candomblé.

"Transversais" é um filme sobre sobreviventes. A violência, tema quase obrigatório quando o assunto envolve transsexuais, atravessa os depoimentos como sombra. Ela se manifesta toda vez que é citado o nome de Dandara dos Santos, uma travesti espancada até a morte em Fortaleza (CE) em 2017.

O episódio é ainda um assombro para os familiares em processo de aceitação. O seu avesso, a rejeição, é em grande parte movido pelo medo de que filhos e amigos se tornem vítimas de uma estatística macabra: no Brasil, 175 pessoas transsexuais foram mortas em 2020. Uma a cada dois dias, mostra o diretor logo de início.

Sabe-se como essa violência termina, mas nunca como começa. E ela começa já na dificuldade de pronunciar um simples nome social — um pequeno passo para quem acolhe, um grande salto para quem é acolhido. Um dos momentos mais tocantes do documentário é quando um dos personagens recorda o dia em que a mãe, resistente a aceitar a mudança, o chama pelo nome.

As pequenas grandes vitórias são o centro dos relatos. Como quando o enfermeiro (aquele que queria ser super-herói) recorda a preocupação com o pai, um homem de 71 anos com quem vivia no interior do Ceará. Estava com as malas prontas caso sua mudança de gênero fosse rechaçada. Mas o pai aceitou. E aceitou tão naturalmente que o fez perceber, naquele dia, que não estava só. O pai era o homem que ele queria ser na vida. "Aproveite o resto de vida que eu tenho com você. Não precisa ir embora. Do que você precisar, estou aqui", ele ouviu.

Pois é: nem todo herói veste capa. E nem toda mudança deve ser um trauma.

São histórias assim que Jair Bolsonaro e sua turma não queriam que você conhecesse. Histórias de quem precisa atuar como super-herói o tempo todo para poder seguir simplesmente vivo. Essa missão fica mais evidente quando os sujeitos deixam de ser "falados" e começam a falar por si.

Pessoas como Caio — e Sâmilla, e Mara, e Kaio e Érikah — precisam ser salvas dos olhares condenatórios, do preconceito, da arrogância e da violência para que possam, também, nos salvar um dia. É um trabalho de formiga, como definiu o diretor durante o lançamento do filme. Para ele, se cada espectador despir seu olhar dos preconceitos costumeiros para conhecer esses personagens, sentir suas dores e alegrias, já seria um excelente começo.

Ao chegar ao grande público, "Transversais" nos lembra que a travessia entre a margem e a aceitação não precisa rimar amor e dor. Vale a pena conferir.