Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Destaques do Oscar em 2022 dialogam com mundo embrutecido e conflagrado
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"Amanhã é o grande dia. A grande vaquejada".
Se fechar os olhos, consigo imaginar Vladimir Putin usando a mesma frase e expressão do vilão mal-encarado de "Ataque dos Cães" na véspera do seu planejado ataque à Ucrânia.
Assim como o líder russo — e Jair Bolsonaro, Viktor Orbán, Donald Trump e grande elenco — o personagem interpretado por Benedict Cumberbatch no longa de Jane Campion é um homem com dificuldade de comunicar desejos, afetos, e que finge não sofrer enquanto produz sofrimento para todos ao redor.
Em comum, os projetos de autocratas não temem, ou dizem não temer, nem a morte nem o inimigo. O nosso, por exemplo, performa sua masculinidade desfilando de peito aberto pela multidão no auge da curva de contaminação da doença respiratória responsável apenas por matar quase 660 mil compatriotas em quase dois anos.
"Tem que deixar de ser um país de maricas", discursou o presidente, em novembro de 2020.
A postura de Phil Burbank, que evitava até lavar as mãos para não demonstrar fraqueza em um universo embrutecido, pautado por repressões, é fatal para o destino do protagonista do longa favorito a levar o Oscar de melhor filme neste domingo (27).
E é isso o que faz da produção da Netflix um dos pontos de observação mais interessantes para entender estes tempos. Tempos que permitiram a Putin e outros pastiches fazerem do mundo a sua própria vaquejada.
Quantas vidas não seriam poupadas se eles tivessem ao menos elaborado suas frustrações com outras ferramentas? Jamais saberemos.
A lista de filmes indicados ao Oscar não é só a lista de produções prestes a serem premiadas, mas também de candidatos a retrato para a posteridade. Quais deles vão falar melhor sobre nós, aqui, agora, daqui a alguns anos?
Se, dois anos atrás, obras como "Parasita" e "Coringa" retrataram um mundo de pactos contestáveis prestes a explodir (como de fato explodiu), em 2022 a Netflix conseguiu emplacar em seu catálogo duas polaroides sobre esses tempos ainda pandêmicos. "Ataque dos Cães" é um deles.
O outro é "Não olhe para cima", a tragicomédia sobre a desgraça que é viver em um mundo idiotizado e prestes a desaparecer por obra de completos inaptos que elegemos como guias — os mesmos que nivelam anos de estudos e observações científicas com direito a opinar sobre o que não conhecem. Quer mais 2022 do que isso?
Os demais candidatos ao Oscar, arrisco dizer, poderiam ser apresentados em qualquer outro momento. Não tem como não gostar ou não se emocionar com a história das irmãs Williams apresentada em "King Richard". Ou com a apresentação em linguagem dos sinais de "Both Sides Now", da Joni Mitchell, na cena final (spoiler, desculpa) em "No ritmo do coração". Ou com a corrida ao encontro, depois de tanto desencontro, dos personagens de "Licorice Pizza".
Mas são filmes que poderiam ser exibidos, sem ganhar ou perder força, aos espectadores de 2021, 2020 ou 2010.
Dos indicados, é possível captar mais ecos das discussões contemporâneas entre as animações do que na categoria principal. "Lucca", de Enrico Casarosa, talvez seja lembrado daqui uns anos como um retrato daqueles tempos em que era preciso viver submerso para não ser tratado como monstro, e um monstro prestes a ser eliminado, pelos habitantes da superfície — minorias e refugiados de um mundo em trânsito sabem do que o diretor está falando.
Quem também investigou a fundo os desafios deste tempo foi Pawo Choyning Dorji em "A felicidade das pequenas coisas", produção do Butão e azarão entre os longas de filme estrangeiro.
O filme conta a história de um jovem viciado em telas, como tantos de nós, que sonha em fazer carreira e brilhar longe de seu país, também como muitos de nós, e que recebe a missão/castigo de trabalhar em uma escola de um vilarejo isolado no Himalaia, onde só se chega após dias de caminhada.
Impressiona como a câmera, antes trêmula, se fixa a certa altura do filme, numa declarada inspiração na câmera estática de Yasujiro Ozu, à medida que a desconexão forçada diante da precariedade do local se transforma em outro tipo de conexão. (Não quero dar spoiler — de novo —, mas há ali também um retrato profundo e delicado da ideia de reencarnação).
"A felicidade das pequenas coisas" é o filme que precisamos rever toda vez que falharem nossas fórmulas de detox digital — um dos muitos desafios destes tempos de dispersão.
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