Movido a rebite, caminhoneiro dirigia três dias sem dormir do RS ao Ceará
Joel saiu da cama pisando macio e cumpriu um ritual de casal. Esticou a cortina que fica atrás do banco do motorista, antes de sentar na boleia do caminhão. Eram 5 da manhã e a mulher dormia. O Volvo FH12 arrancou pelo trecho mineiro da BR-116 para os últimos quilômetros de sua existência.
Zuleika, logo em seguida, despertaria agitada reclamando da fumaça. Joel não percebera porque o cheiro de queimado vinha de baixo da cama. Mas, assim que a cortina foi aberta, a cabine foi virando uma nuvem tóxica e densa. "Comecei a reduzir e era tanta fumaça que já não conseguia ver minha mulher no banco do lado. De tão desesperada, ela abriu a porta e se jogou."
A carreta estava a 20 km/h e Joel puxou o freio de mão, por medo de atropelar Zuleika. As 30 toneladas de inércia fizeram os pneus arrastarem no asfalto. Quando o caminhão parou, o motorista puxou o extintor e levantou a cama. O buraco embaixo cuspiu fogo: mãos queimadas; cabelo chamuscado.
Um sacrifício inútil.
O extintor não fez nem cócegas no incêndio. Joel manteve os vidros fechados para haver menos oxigênio para alimentar o fogo. Com as mãos latejando, correu para a carroceria e salvou a caixa de ferramentas. Ele carregava a geladeira quando a pressão interna da cabine fez os vidros explodirem. O caminhão estava condenado. "Na hora a dor é muito grande, você nem chora, você não acredita."
Desorientado, Joel foi para perto da mulher assistir as chamas se alastrarem para carroceria. Foi quando um caminhoneiro se aproximou, oferecendo uma jaqueta. Zuleika estava só de calcinha e camiseta. A 1,5 mil quilômetros de casa, o casal tinha só a roupa do corpo.
O acidente aconteceu no ano de 2019 em Leopoldina (MG) e redefiniu a vida de Joel Duarte de Borba, 52 anos. Ele se viu a pé pela primeira vez desde que alcançara a maioridade. Na volta para casa, em Capão da Canoa (RS), recebeu roupas da paróquia local e uma proposta de trabalho de uma transportadora. Aceitou sem pensar muito.
Joel voltou à estrada e, entre sábado (19) e segunda-feira (21), percorreu 1.457 quilômetros de Osório (RS) a Duque de Caxias (RJ) carregando poliuretano. A reportagem do TAB pegou carona com ele.
Novo modo de vida
Foram três dias rodando do nascer do sol até perto da meia-noite. O esforço para cumprir o prazo de entrega da carga permitiu um único almoço e um único banho, em todo o período.
Cara que se orgulha de ser caminhoneiro raiz, desses que dirigia carreta no colo do pai, Joel mudou de vida aceitando o emprego CLT. Como autônomo, era dono do próprio caminhão e podia pegar carga para a cidade que quisesse, dormir no posto de combustível que escolhesse e dirigir como os puxadores de carga preferem, de pé no chão.
Um motorista contratado dirige caminhão de empresa e veste uniforme alinhado, igual atendente do McDonald's em dia de foto de funcionário do mês. As regras incluem dormir, comer e abastecer somente onde o patrão permite. A rota e a carga são sempre as mesmas. Definitivamente, não era a vida que Joel desejava.
Mas quem consegue fazer tudo que deseja? Na época do acidente, ele ainda devia R$ 130 mil do Volvo incinerado e sofria para pagar as prestações. Ao receber R$ 145 mil do seguro, quitou as dívidas e fez a opção pela estabilidade da CLT.
A movimentação é cada vez mais comum nas estradas. O roteiro se repete: o caminhão do autônomo quebra, ele está em dificuldades financeiras e vira celetista. O que consola Joel é trabalhar numa transportadora de pequeno porte e ter um "patrão raiz". Ele ainda tira as chinelas toda vez que entra na cabine.
"É minha casa aqui. Imagina ter barro, poeira ao lado da cama?"
72 horas na boleia
Subir três degraus para chegar à cabine torna a viagem de caminhão pelo litoral uma experiência diferente. Da janela do carona se veem acostamento, areia e mar nos trechos de litoral. Os caminhoneiros de longa data exaltam a sensação de liberdade que associam à profissão.
Mas a verdade é que eles não rodam em ritmo de passeio. Joel dirigiu todos os dias desde as primeiras horas da manhã até tarde da noite — e dá para dizer que hoje está pegando leve. "Uma época eu ia para Fortaleza e tocava direto de Porto Alegre. Eram três dias direto, parando só para abastecer."
Consequência de prazos tão exíguos que suprimem o direito ao sono e expõem os caminhoneiros a situações que eles mesmo não aprovam. Aguentar 72 horas ininterruptas ao volante, só com rebite. Joel mandava dois comprimidos ao amanhecer e uma dose de reforço ao meio-dia. À noite, repetia a fórmula. Dois comprimidos no momento que ligava os faróis e reforço à meia-noite. "O efeito no cérebro era na hora."
Ele não ignora os danos à saúde por manter esse hábito durante 28 anos. Nunca foi ao médico, mas tem certeza de que está baleado: depois de tomar o rebite, sentia o coração martelando no peito. De tanto ficar sem pregar os olhos, não enxerga letras miúdas.
Quatro estados, 26 horas
Os caminhoneiros aceitam essa vida porque seguem um código. Não importa o tamanho do sacrifício, cumprirão o prazo da carga nem que ele pareça inexequível. Todos reclamam das condições de trabalho, mas existe uma aura em conseguir ir além do limite suportável. Efraim Tinoco de Sousa, 45, é um caminhoneiro com contrato CLT que cruzou o TAB num posto em Campina Grande do Sul (PR). O encontro se deu no café da manhã de domingo, às 7h.
Efraim matou um misto quente feito com fatias de pão caseiro do tamanho de uma pizza média. Depois, mandou para dentro um pedaço de bolo de fubá com as dimensões ligeiramente inferiores às de uma caixa de bombom. Voracidade que se explica porque caminhoneiro não faz três refeições diárias. É café da manhã e janta. Nesse intervalo, o motorista segura o xixi, a fome, a sede e o cansaço.
Durante a conversa, Efraim falava da sua programação. Tinha 26 horas para cruzar Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e chegar a Vila Velha (ES) com uma carga de batata frita congelada - trajeto de 1.324 quilômetros.
Viagem é missão, caminhoneiro raiz é soldado.
Dirigindo sob escolta
Joel demorou a tomar parte na conversa porque tretava com o caixa do posto, que tentava empurrar a cota mínima de 480 litros de combustível. Rosnaram um para o outro até ficar entendido que o caminhoneiro abasteceria a quantia que quisesse. Em beira de estrada, não necessariamente vigora a regra de que o cliente tem sempre razão.
Com Joel e a Scania alimentados, a viagem para Duque de Caxias reiniciou sob uma chuva fina empurrada contra o para-brisas pelo vento forte. Parecia que as nuvens borrifavam a estrada. Os troncos dos pinheiros em Campina Grande do Sul (PR) não se abalavam, mas os caminhoneiros que andavam no acostamento se encolhiam.
"Tem muito caminhoneiro infartando e cada vez mais gente faz exercício", explica Joel.
Centenas de quilômetros adiante, na entrada do arco metropolitano do Rio de Janeiro, outra concentração no acostamento. Dezenas de caminhões carregando câmaras frias formavam uma fila enorme na beira da estrada. Joel disse que estavam esperando a escolta. As cargas de carne são tão visadas que os motoristas só entram na cidade cercados com seguranças armados, em carros e motos.
É uma cilada, Bino
Encontrar um bando de caminhoneiro parado na chegada ao Rio de Janeiro é normal. Surpresa foi presenciar uma reunião do sindicato de autônomos num posto em Itajaí (SC). Os motoristas que transportam contêineres dos portos de Itajaí e Navegantes (SC) falavam do aumento do diesel. Os discursos eram contrários à greve.
Os motoristas justificavam que o aumento de 24,9% no diesel levará à inflação e a paralisação só servirá para a culpa cair sobre eles. A intenção é repassar o reajuste ao frete. Aqui aparece a falta de união da categoria.
Gilson Rodrigues de Oliveira está no grupo de autônomos que carrega contêineres vazios. São 700 motoristas que se uniram em cooperativa. O caminhoneiro diz que, a partir de abril, vai vigorar aumento de 30% no frete.
Os motoristas que transportam contêineres cheios são mais numerosos: 2,3 mil. Também são mais desunidos. Somente 14 compareceram à reunião. Faz sentido esse grupo não ter recebido proposta de aumento. Aor Robert Dal Posso lamentava a falta de engajamento numa hora tão complicada e fazia uma sugestão: "Frete deveria ter paridade com dólar e seguir o preço do barril do petróleo".
Presidente do sindicato, Vanderlei de Oliveira contou que o bolsonarismo divide a categoria. Muitos chamam os encontros de "reunião de esquerdistas".
Onde os fracos não têm vez
Joel voltou ao caminhão inspirado pela reunião. Reclamou que um embarcador (dono da mercadoria) contrata uma transportadora grande e ela terceiriza o serviço para um autônomo ou empresa menor, pagando 30% a menos. A tática dá certo porque muitas vezes o motorista está longe de casa.
Pagar por estacionamento, banho e comida custa R$ 100 por dia e o caminhoneiro aceita condições desfavoráveis para tocar de volta até a cidade de origem. Joel pega o celular e grava áudios com essas reflexões para uma enormidade de grupo. Nas mensagens, descreve um sistema em que qualquer fragilidade será explorada.
A chateação se dissipa ao encontrar um conhecido. Com 34 anos de estrada, ele reconhece os caminhões dos colegas de sua região no Rio Grande do Sul. Quando se encontram na estrada, ambos trocam longas buzinadas.
Em seguida, Joel grava um áudio de minuto e meio para cima, em que deseja boa viagem, pergunta da família e pede que Deus acompanhe e proteja o amigo. O ritual se repetiu dezenas de vezes no percurso entre Osório e Duque de Caxias. O WhatsApp substituiu o rádio. É a companhia do caminhoneiro.
O tempo é implacável
Depois de três dias fazendo turnos de trabalho de pelo menos 18 horas, o calor de Duque de Caxias é sentido na pele nas primeiras horas de segunda-feira. Joel encosta no destino às 8 da manhã, 60 minutos antes do prazo. Descobre que há motoristas esperando para descarregar desde sábado.
Cleo Alves Fernandes aguarda há 48 horas em traje completo de gaúcho. "Meu costume é esse", explica o caminhoneiro natural de Rosário do Sul, cidade na região fronteiriça com o Uruguai. Ele justifica o lenço vermelho por ser maragato, identificação do grupo que se rebelou contra o governo brasileiro na Revolução Federalista de 1893.
O lenço é raridade hoje porque o tempo muda rivalidades, hábitos e pensamentos. Joel sofre por se ver no mesmo caminho do pano encarnado. A roda que profissionalizou as cadeias da indústria e do agronegócio ameaça o estilo de vida que ele abraçou na infância.
Se aproximar da fase final da vida ganhando menos é um problema, mas sua angústia engloba outros componentes. Mesmo com seus defeitos e regras draconianas, a estrada é a matéria-prima da essência do Joel profissional, do Joel homem e do Joel pai.
O motorista que passou décadas tomando pílulas na luta contra o relógio descobriu que o tempo é imbatível, e seus efeitos, incontroláveis. As estradas têm cada vez mais gente de uniforme e menos autônomos.
O que os dois tipos de caminhoneiros partilham são condições duras de trabalho, que se materializam na fila para descarregar em Duque de Caxias. Chove e o abrigo é embaixo da carroceria de uma carreta. Não há chuveiro nem restaurante.
Joel esperou 28 horas para descarregar. Nesse tempo, Efraim atravessaria quatro estados.
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