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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Morte na câmara de gás: nosso memorial do genocídio é erguido em tempo real

Homem em câmara de gás da PRF em Sergipe - Reprodução
Homem em câmara de gás da PRF em Sergipe Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

29/05/2022 04h01

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"A história da humanidade é uma história de horrores", diz o professor interpretado por Rémy Girard em um diálogo com uma enfermeira religiosa no filme "As Invasões Bárbaras".

A conclusão acontece após listar números monstruosos do genocídio promovido nas Américas — o que inclui os arredores daquele hospital no Canadá — durante a colonização europeia.

A reconstituição desses horrores é um desafio histórico. Ela é mediada pelos livros, filmes e museus. Em Auschwitz-Birkenau, o antigo campo de concentração nazista transformado em museu, a preservação da memória de tudo o que ocorreu em seu interior era compreendida pelos sobreviventes como um dever moral. Ali a materialidade do horror é dimensionada pelas toneladas de cabelos das pessoas mortas e expostas durante as décadas seguintes numa sala com penumbra.

"Esse cabelo existe, não podemos negá-lo", resumiu, certa vez, Israel Gutman, então historiador-chefe do Museu do Holocausto de Jerusalém.

A ampliação do acesso a tecnologias de registro, como as operadas por câmeras de celular, nos permite ver a (quase) tudo o tempo todo e em tempo real. Não há horror que nos escape, como se vivêssemos também enclausurados, cercados por câmeras de monitoramento, em uma versão mal editada de um Big Brother macabro. Nem sempre foi assim, embora os rastro históricos de sangue e devastação deixados para a posteridade sirvam como elementos ativadores dessa memória.

A máquina hoje revela o espelho de um país fundado no genocídio.

O massacre indígena, em pleno curso, é negado por agentes de destruição acobertados pelas vozes oficiais e pela distância dos focos das lentes e dos incêndios.

O do povo negro é acobertado por sentenças prévias e registros trêmulos: se morava em território suspeito, era bandido; e se era bandido morreu foi pouco.

A visão turva dos fatos permite aos espectadores e agentes olharem para a caçada humana sobreposta a territórios periféricos e chamar aquilo de "confronto" ou "política de segurança".

Mas há cenas cuja evidência desnorteia.

Em Umbaúba, estado de Sergipe, Genivaldo de Jesus Santos, homem negro de 38 anos com transtornos psiquiátricos, foi assassinado por agentes da Polícia Rodoviária Federal após ser imobilizado e trancado em uma viatura, como se acabasse de ser capturado e arremessado em direção a um navio negreiro.

As cenas mostram o homem rendido, desarmado, de bermuda e chinelos, contorcendo-se e pedindo socorro enquanto era prensado em um porta-malas. Naquele cubículo, ele inalou fumaça e spray de pimenta lançados pelos agentes. Era a câmara de gás por onde entrou (entramos?) sem poder sair.

Era aquilo um homem? Em que território daqueles corpos robóticos protegidos por capacetes e uniformes pulsava algum resquício de pele, carne, osso, alma?

O processo de apagamento de qualquer subjetividade, como a dúvida ou o remorso, sucede a desumanização de agredido e agressores. De uns não se via sequer o rosto. De outro até os urros e gritos foram abafados. Quem mais poderia ouvi-los?

Não parece ser acaso que, na mesma semana, Nise da Silveira, médica psiquiátrica que mostrou, pela arte, outro caminho para as abordagens agressivas no tratamento de pessoas com doenças mentais, tenha sido limada do livro de memória dos heróis da pátria.

Em nota robótica, a PRF justificou o assassinato de um homem com transtornos dizendo que ele resistiu ativamente à abordagem. Devido à sua agressividade, informou a instituição, "foram empregados técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção". Foram essas técnicas e esses instrumentos que levaram Genivaldo à morte. Ele morreu asfixiado antes de chegar ao hospital.

Como outras, essa asfixia não é metáfora. É projeto político.

Genivaldo era mais um. Mas deixou de ser mais um porque tinha um rosto e esse rosto foi flagrado pelas câmeras. Esse rosto é, até a próxima atualização, a face escancarada de um país fundado no horror.

O que o vitimou está à vista de quem tiver olhos para ver, estômago para assistir e coragem para entender.

Genivaldo morreu porque era negro em um país que naturalizou as sevícias e a aniquilação de corpos negros. E que tirou de seus familiares o direito ao luto e a qualquer memorial, como o destroçado por agentes do estado no Jacarezinho, no Rio. O processo de apagamento precisa ser levado a sério, e ele exige a limpeza dos rastros de que essas pessoas sequer pisaram nessa planície algum dia.

É para evitar a apologia ao crime, eles dizem, sem que os supostos criminosos tenham sido sequer denunciados, julgados e condenados como tal.

Quem destampou tudo isso? Quem dá resguardo? Quanto de tudo isso estava apenas submerso antes de desfilarem diante das câmeras?

O Brasil que se negou a punir seus torturadores ao dormir acordou com uma fila de mortos e torturados no presente.

Sim, a história da humanidade é uma história de horrores. A nossa, contra qualquer golpe de memória e negação, precisa estar documentada, registrada em tempo real e guardada para a posteridade — aquele momento em que as experiências do passado são relatadas com o aviso de que não podem se repetir.

É melhor não desviar os olhos.

Como definiu a antropóloga Adriana Dias, da Unicamp, no Twitter, já não é exagero pensar que o enorme passado que temos pela frente passa pela Berlim de 1933. O Brasil do presente, terreno propício para a ascensão de grupos neonazistas, já começou a matar pessoas com deficiência em câmaras de gás. Falta mais o quê?