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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Alunos raspam cabelo em homenagem a amigo no PR e dão aula sobre amizade

Após diagnóstico, Nicolas tem enfrentado tudo com uma pequena ajuda dos amigos - Reprodução/TV Globo
Após diagnóstico, Nicolas tem enfrentado tudo com uma pequena ajuda dos amigos Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista do UOL

05/06/2022 04h01

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Nicolas, estudante de 17 anos de São José dos Pinhais, no Paraná, foi ao barbeiro no último fim de semana para raspar o topete.

Diagnosticado com um linfoma no tórax, ele tomou a decisão após passar por um tratamento de quimioterapia que levava à queda seus ainda longos mas enfraquecidos fios de cabelo.

Ronaldo, o barbeiro, atendeu ao pedido do cliente. Antes, raspou o próprio cabelo.

Os amigos do terceiro ano do ensino médio e até um professor de Nicolas fizeram o mesmo corte. Foi o que ele descobriu após sair da sala de aula por alguns momentos a pedido da direção. Era tudo parte do plano.

Quando voltou, os rapazes da turma estavam carecas, como ele.

As cenas gravadas na escola e no barbeiro viralizaram. E chegaram onde não poderiam imaginar que chegassem.

Em casa, as imagens não só foram vistas e revistas como serviram como uma lufada de ar num ambiente digital intoxicado por outras correntes onde circulam o ódio e a desesperança.

A contracorrente pode ser minoritária, mas é perene e não será esquecida tão cedo. Nicolas, quando sair dessa, terá nas paredes da memória uma razão e tanto para seguir firme quando a vida teimar em não pisar devagar.

"Quando recebi tudo isso, de todos eles, senti que estivesse despencando e eles apareceram como se fosse meu chão. Me firmei de novo. Se duvidar, essa é minha cura", disse Nicolas, ao fim da homenagem.

Quem tem amigo tem tudo, diz o ditado — batido, clichê, mas do qual nos esquecemos com o tempo.

Perto dos 40 anos, lembrei de amigos de escola e faculdade de quem me afastei em razão da distância geográfica, temporal e moral. Essa última está inserida em discussões políticas que se abriram como fenda ao longo dos anos. Creio que tudo começou em um encontro de turmas em que, em vez de abraços, os antigos amigos trocaram cartões profissionais.

Mas houve um tempo, e isso eu queria escrever a mim mesmo e para meus amigos às voltas dos 17 anos, que nada disso estava em jogo. Foi num jogo de futebol de salão, por exemplo, que um amigo da turma chorou litros abraçado aos outros jogadores do time, ao ver as faixas em seu apoio na arquibancada improvisada da quadra. Ele tinha perdido o pai dias antes.

Muita coisa aconteceu daquele dia em diante. Mas daquele dia nem ele nem nós nos esquecemos.

Houve outros. E é sempre bom voltar a esse tempo como quem observa um recorte de jornal colado na parede para nunca ser esquecido.

Dias atrás, ouvi o escritor e compositor Márcio Borges discorrer, com a paixão comum aos grandes artistas, sobre sua amizade com Milton Nascimento e os parceiros do Clube da Esquina, uma espécie de materialização sonora de tudo o que jovens amigos podem fazer juntos quando tudo o que têm pela frente se resume a sonhos e coragem — não sei se nessa ordem.

"Ainda bem que éramos jovens e inexperientes. Assim pudemos nos entregar inteiramente a essa experiência", disse ele, a certa altura, para uma plateia emocionada do Clube Minas Tênis, em Belo Horizonte.

Milton Nascimento cantou que amigo é coisa para se guardar debaixo de sete chaves e dentro do coração. Ele também cantou, em parceria com Elis Regina, as dores de um parto chamado crescimento ao perguntar a um amigo o que foi feito de tudo o que sonharam juntos.

Esse ajuste de contas da vida adulta mediado pela memória de quando o cansaço era rio e rio qualquer dava pé é, em si, um privilégio.

Em uma coluna recente publicada na Folha de S.Paulo, o advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro Ronaldo Lemos contou como o mundo atual se tornou um lugar inóspito para quem está a um passo da vida adulta. O vazio existencial é explicado pela falta emprego e de perspectiva de mobilidade social.

Não só. O que falta a muita gente é amigo. Alienação, solidão, desagregação social e perda de sentido são o efeito rebote desse fenômeno.

Prova disso é uma pesquisa feita nos EUA com pessoas entre 23 e 38 anos citada no artigo que apontou um quadro desolador: quase metade dos entrevistados dizia ter "zero amigos" ou nenhum amigo próximo.

Lemos mostrou que, na China, já é chamado de "geração morango" o conjunto cada vez maior de jovens que buscam destaque e projeção da própria imagem através das redes — como a fruta, eles são bonitos de se ver, mas facilmente esmagados.

As chances de isso acontecer serão menores à medida que, nessa via complicada e tortuosa entre a adolescência e a vida adulta, formamos com os amigos uma rede de apoio afetivo fundamental.

As imagens de solidariedade ao jovem Nicolas me fizeram lembrar de tudo isso. Quem tem amigo pode não ter tudo, mas tem onde se apoiar nos momentos mais tensos.

Volto a Milton e Elis como quem quer também encontrar um verso menino escrito anos atrás. Se muito vale o já feito, mais vale o que será.

Para Nicolas e a turma do terceirão, outros outubros virão. E também outras manhãs. Plenas de sol e de luz.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL