Em mostra, Márcio Borges revê 'Jules e Jim', inspiração do Clube da Esquina
Fazia mais de 20 anos que Márcio Borges, escritor e letrista de algumas das músicas mais emblemáticas do Clube da Esquina, não revia "Jules e Jim".
Não revia por medo de que acontecesse exatamente o que aconteceu na noite de sexta-feira passada (11), em uma recém-inaugurada sala de cinema de outro clube, o Minas Tênis, onde fica o Centro Cultural Unimed-BH Minas, em Belo Horizonte.
"Entrei num pranto compulsivo e não conseguia parar", revelou, após a sessão. "Passou um filme na cabeça e não era só o 'Jules e Jim'. Era o filme da minha vida."
Esse filme é conhecido. Em uma tarde de 1964, Borges e o vizinho Bituca foram até o Cine Tupi, na capital mineira, assistir ao longa de François Truffaut. O filme retrata a amizade entre dois jovens, um francês (Henri Serre) e um alemão (Oskar Werner), que sobrevive à guerra e ao amor dividido pela mesma mulher (Jeanne Moreau).
Impactados, os amigos permaneceram no cinema até o começo da noite. Só saíram de lá ao fim da terceira sessão, em prantos. Naquela noite, correram para o apartamento da família Borges, no edifício Levy, onde por alguma conjunção cósmica moravam nomes que vieram a se destacar na cena cultural brasileira, como o escritor Júlio Gomide, o psicanalista Chaim Samuel Katz, o ator Jonas Bloch e suas filhas, a cantora Martinha, da Jovem Guarda, o maestro Wagner Tiso e Lô Borges, irmão mais novo de Márcio. Bituca, que morava em uma pensão no mesmo prédio, é ainda hoje o apelido de Milton Nascimento.
Nas horas seguintes à sessão, a dupla deu início a uma das mais frutíferas parcerias da história da música. Quando amanheceu, haviam nascido três pequenas obras-primas: "Novena", "Gira-Girou" e "Crença".
"Era a pedra fundamental do que ficou conhecido como Clube da Esquina. Tantos anos depois, ainda não paramos de fazer música", resume Márcio.
Nada será como antes
Revisto depois de décadas, o filme, segundo Borges, conservou a força poética que levou aquela parceria para a eternidade.
"É como se aquele filme falasse da minha amizade com o Milton. Como se a gente também estivesse disposto a repartir tudo nesta vida. Nada nos separaria um do outro, nem um amor. Ainda bem que éramos jovens e inexperientes. Assim pudemos nos entregar inteiramente a essa experiência."
Jules e Jim se tratavam como Dom Quixote e Sancho Pança. "Nossa dupla tinha isso. Éramos quixotescos. Estávamos começando a encarar nossos moinhos de vento que depois se transformaram em monstros reais. A amizade dos dois resiste à guerra. Cada um estava de um lado da trincheira e o grande medo deles era que um matasse o outro. Quando Jules é removido para o front russo, o pior lugar da guerra, ele sente um grande alívio. Estava isento do risco de matar o seu amigo. Essas metáforas nós transformamos em fermento da nossa própria vida", resume Borges, que ainda se lembra das palavras de Milton ao fim das três sessões em 1964: "Essa é a nossa história. Nós somos esses caras aí".
Milton e Borges ficaram mais de dois anos sem se ver por causa da pandemia. O letrista diz sentir falta do amigo, mas não do Bituca aos 21 anos de idade. "Tenho saudade do Milton com 79 anos hoje. É uma coisa concreta. Não gosto de viver das projeções passadas, embora essa obra nos leve a isso constantemente. Vou ter saudade da ditadura, quando a gente tinha de se reunir clandestinamente?"
Trem de doido
Na abertura da mostra "Mais fundo que o mar - o cinema, as músicas e as esquinas", com a presença de Márcio Borges, "Jules e Jim" ganhou três sessões seguidas. Era uma forma de rememorar "a sessão de cinema mais emblemática da história da cidade", segundo o cineasta Samuel Marotta, curador do evento.
A ideia de montar uma mostra com debates, oficinas e exibições de filmes que marcaram os compositores daquela turma surgiu após a leitura de "Os sonhos não envelhecem". O livro de Márcio Borges fez o diretor do premiado "Baixo Centro", em parceria com Ewerton Belico, notar como o cinema, a partir de "Jules e Jim", se tornou a gênese do movimento que culminou em um dos mais aclamados álbuns da MPB: o cinquentão "Clube da Esquina", de 1972.
A relação com o cinema foi abordada por artistas como Ronaldo Bastos, Lô Borges, Toninho Horta, Beto Guedes, Tavinho Moura, Wagner Tiso e, claro, Márcio Borges, em depoimentos presentes no livro-catálogo da mostra.
"Sempre fui apaixonado por cinema e sei que realmente isso me influenciou para fazer a música que faço hoje, que é exatamente esse espectro de cores, de dimensões diferentes", disse Toninho Horta em seu depoimento.
"O cinema foi fundamental para pensar o mundo em que eu vivia", resumiu Bastos.
Já Tiso, que ministrou um curso sobre trilha sonora durante a mostra, contou que se apaixonou por músicas das grandes orquestras através do cinema. "Foi o momento em que eu percebi a grandeza da música."
Borges pondera, porém, que o cinema não atingiu a todos igualmente do Clube. "Bituca era tão cinéfilo quanto eu. O Murilo Antunes, o Fernando Brant, o Tavinho Moura também. Outros adoravam música, mas não tinham ligação com o cinema. O próprio Lô diz que filme para ele era filme dos Beatles, do Mazzaropi e olhe lá", disse.
"Então a cinefilia partia dos letristas, que estavam ligados também à literatura e à filosofia. Nossa linguagem poética era cinematográfica, como uma montagem, um plano-sequência. Então o cinema foi um dos ingredientes que fundaram e constituíram a estética, a música e até a celebridade do Clube da Esquina."
Tudo o que você podia ser
A relação daqueles jovens com o cinema não ficou só na inspiração. Milton Nascimento atuou em diversos filmes, como "Fitzcarraldo", e teve no cineasta Ruy Guerra um grande parceiro de composições. Já os amigos Wagner Tiso e Tavinho Moura assinaram trilhas sonoras de filmes como "A ostra e o vento" (1997) e "Noites do Sertão" (1983).
Márcio Borges seguiu com um pé na música e outro no cinema. Na juventude, foi frequentador assíduo do CEC (Centro de Estudos Cinematográficos), onde conheceu uma jovem fã de cinema que anos depois se tornaria presidenta da República. "Godard" era o apelido que Dilma Rousseff deu ao amigo letrista.
Dilma, inclusive, chegou a colaborar na produção de "Joãozinho e Maria", curta de traços experimentais dirigido por Borges e que chegou a ser inscrito no Festival de Cinema Amador JB-Mesbla, em 1966. Levou o prêmio de "Melhor Inventiva Formal" e foi aclamado como genial por Luiz Carlos Barreto.
Desaparecida, a cópia desse filme, que tinha Milton Nascimento no elenco, se tornou uma espécie de arca perdida do Clube da Esquina.
Desde então, embora despiste, o letrista cinéfilo não parou de filmar. Já registrou a rotina de amigos artistas e fez recentemente um curta-metragem com a família. Mas por que não manteve os pés nessa estrada até o fim?
"Tenho preguiça. Desisti de fazer cinema quando virei um personagem do Clube da Esquina. É muito mais barato pegar lápis e papel e escrever uma música do que fazer um filme, que exige cinco anos só de pré-produção. Depois de velho fiquei com mais urgência das coisas."
Estrelas
Além da amizade com Milton, Borges diz que a cinefilia daqueles tempos segue preservada, mas praticamente não atravessou o século 21. "O cinema é a arte do século 20 por excelência. Esse cinema dos super-heróis, da Marvel, assisto a todos e adoro. Mas não tem nada a ver com Elia Kazan, com uma obra-prima do Antonioni ou com a possibilidade de mergulhar profundamente em uma experiência do Ingmar Bergman. Esses filmes falavam mais à alma das pessoas, continham críticas sociais, visões de mundo complexas. E depois foram diluídas pelo industrial de Hollywood. Essa indústria permitia o surgimento de gênios, como Hitchcock, Chaplin, Ford, Hawks, Fuller. No século 21 a coisa começou a afunilar. Mesmo assim temos Scorsese, Coppola, Tarantino, caras que na grande indústria conseguem fazer filmes autorais. Outro dia revi a sequência final de 'Encurralado', do Spielberg. Aquilo é genial. É cinema puro."
Aconselhado pela filha Isabel Borges, cineasta e apresentadora do podcast "A tela que habito", Márcio assistiu recentemente ao filme "Ataque dos Cães", de Jane Campion, e achou maravilhoso. "Minha filha tem uma visão mais atualizada. Achei um filme encantador", diz. "Mas sempre vou dar preferência para as obras eternas construídas no auge, quando o cinema era a arte moderna por excelência."
Como os sonhos, as músicas e os filmes também não envelhecem.
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