Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Caso Nakamura mostra confusão entre caridade e adoção no país, diz ativista
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Em suas redes sociais, a atriz e bailarina Carol Nakamura relatou sua revolta ao ver a criança que ela diz ter adotado há cerca de três anos voltar a morar com os pais biológicos. Sem que fosse sua intenção, ela acabou destampando uma discussão complexa e delicada a respeito da adoção no país.
Essa discussão, quase sempre, desconsidera uma parte fundamental de todo o processo: as crianças ou os adolescentes da história.
Esse "detalhe" do processo é tão relegado que, muito recentemente, levou pessoas adotadas a se reunir em uma associação, a Adotiva Brasil, para trocar ideias, vivências e propostas de política pública a partir de suas perspectivas. É uma espécie de afirmação de um lugar de fala usualmente silenciado.
Cofundadora da associação, a jornalista e bacharela em Direito Larissa Alves, que administra o perfil Olhar Adotivo no Instagram, repercutiu a história da atriz em suas redes e foi enfática ao dizer que este não é um caso de adoção.
Isso porque a atriz alega que tinha a "guarda provisória" do garoto de 12 anos que agora decidiu voltar à família de origem. Esse dispositivo legal, porém, só existe quando há vinculação com a família (como, por exemplo, quando um dos pais ou os avós da criança ficam com ela em casos de separação).
Por algum tempo, esse acordo para adoção sem mediação entre famílias pretendentes e as famílias de origem era chamado de "adoção à brasileira" — um outro nome para adoção ilegal.
O caso Nakamura, segundo Alves, mostra a importância de instituições como o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e o SNA (Sistema Nacional de Adoção), mecanismo que possibilita o acompanhamento e a proteção da criança ou adolescente desde a entrada até sua saída. O intuito é justamente ampliar a participação dos pretendentes, que precisam ser pré-cadastrados e ter as habilidades acompanhadas por profissionais de assistência social e psicólogos, além dos juízes de suas comarcas.
A jornalista compara o SNA ao SUS (Sistema Único de Saúde), que precisa (e sempre precisará) de melhorias, mas cuja existência é fundamental. Defende que é preciso entender a adoção sem tabus. "Temos um imaginário social muito complexo que confunde adoção com caridade e que coloca estereótipos nas famílias de origem. A gente tem de entender por que essas crianças chegam à adoção, o que é responsabilidade coletiva e qual é a realidade de pessoas que não chegam a ser adotadas. Tem muito desserviço rolando."
Para a porta-voz do Adotiva, expor uma criança de 12 anos na internet, como fez Nakamura, é um erro "em inúmeros graus". E escancara uma violência psicológica sutil.
Isso acontece porque pessoas que abrigam crianças por fora do SNA desconhecem o chamado "emocional adotivo". Estão, por essa razão, despreparadas para lidar com o comportamento da criança quando ela é levada para uma nova família.
Muitas vezes a criança ou o adolescente testa o amor dessas famílias e uma das funções do sistema, que oferece cursos e uma rede de contato e apoio entre pais e pretendentes, é justamente preparar os adultos da sala para situações de revolta.
Alves lembra que nem sempre o chamado "bom comportamento" nessa transição é bom sinal, já que pode partir de um lugar de ansiedade e do medo da perda do vínculo. Por isso é tão importante ouvir e entender a perspectiva de quem é, foi ou será adotado ou adotada.
O episódio de Nakamura, segundo a ativista, evidenciou a importância de entender a responsabilidade dos pais em questões como cuidado e educação. Não cabe à criança, obviamente, decidir se quer ou não faltar à escola, como chegou a "acusar" a atriz.
"Não se pode confundir a responsabilidade de um adulto com o papel de uma criança e depois colocar essa criança como manipuladora porque vai mal na escola", diz a jornalista à coluna.
Antes do ECA e do SNA, acrescenta ela, havia ainda mais adoções diretas no país, e isso era perigoso em diversos sentidos — um deles, por não respeitar o direito à biografia da pessoa adotada (em outras palavras, sabotava a possibilidade de ela conhecer quem ela era, de onde veio, como e por quê).
Casos de cárcere privado, em que a pessoa levada para dentro das casas de famílias ricas e que trabalharam lá durante anos em condições análogas à escravidão, tendem a ser coibidos justamente quando o Estado é capaz de acompanhar e proteger a criança. Saber como ela está e para onde vai é parte desse processo.
A ativista lembra ainda que em nenhuma família, e em nenhuma ocasião, os filhos devem algo para os pais. "É o mínimo você pagar material escolar, comprar roupas, viajar e levar o filho junto. Alguém falaria o contrário se fosse um filho biológico? Ninguém expõe uma criança quando ela decide morar com o pai ou a mãe após uma separação dizendo que não vai mais pagar a sua escola. Seria horrível, mas acham natural falar assim com uma criança adotada", critica.
"Se minha mãe não me obrigasse, eu também não iria também à escola. Ia querer ficar dormindo. As pessoas entendem isso quando a filiação é biológica, mas na adotiva chamam de criança ingrata que está perdendo uma oportunidade de subir na vida. Como assim?", questiona.
Esse desconhecimento da realidade de pessoas adotadas, que não começa na adoção, mas já no contexto dos abrigos, possibilita o surgimento de visões elitistas que as pessoas passam para frente sem refletir.
Alves critica a série de stories feita por Nakamura em que mostra a vida da criança antes e depois de morar com ela, contrapondo as origens em uma casa humilde com imagens do rapaz bem vestido e tratado como "príncipe", como a atriz chegou a dizer.
A jornalista também critica a exposição da família biológica durante o episódio. A certa altura, Carol Nakamura deu a entender que seriam pessoas interesseiras. Por isso Larissa Alves defende que é preciso parar de confundir adoção com caridade. É o primeiro passo para deixar de tratar a criança ou o adolescente como propriedade.
Casos como este, segundo ela, aumentam o estigma em relação a crianças mais velhas e prejudica programas sérios (e cheios de experiências bem-sucedidas) como os de adoção tardia.
"A convivência vai além dos recursos financeiros. Se tivéssemos um bom Estado, teríamos teto, saúde e educação para todo mundo. Ninguém precisaria ser rico."
Mas o afeto, lembra ela, vem de outro lugar. Afeto é uma outra linguagem.
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