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Do Rio ao Recife: quando a sirene do aquecimento global será ouvida?
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Na sexta-feira (28), a plataforma Climatempo alertou que o volume de chuvas se aproximava de 500 mm em apenas 28 dias em ao menos nove áreas da região metropolitana do Recife. Quase toda a chuva caiu a partir do dia 23, segundo o site, em lugares como Córrego do Jenipapo, Ibura, Alto do Mandu e Dois Irmãos.
A média de precipitação em maio na capital de Pernambuco, em condições normais, é de 317 mm.
Historicamente, nessa época a região é afetada pelos chamados distúrbios ondulatórios de leste, perturbações no campo de vento e pressão que atuam na faixa tropical do planeta e formam áreas de instabilidade no oceano.
Em 2022, esse fenômeno, responsável por espalhar nuvens carregadas para o leste do Nordeste, sempre segundo a Climatempo, foi agravado pelo aumento da temperatura superficial registrada no Atlântico.
"A água do mar em toda a costa nordestina está até 1°C mais quente do que o normal nos últimos 30 dias. A temperatura do mar acima do normal aumenta a evaporação e mais ar úmido é injetado na atmosfera para alimentar as nuvens e formar mais gotas de chuva", informava a Climatempo na nota.
Era como se um médico dissesse que o paciente teria poucas horas de vida após o diagnóstico caso não tomasse medidas emergenciais.
No caso da "Veneza Brasileira", também conhecida como a capital do país mais ameaçada pelo avanço do nível do mar — e a 16ª do mundo, segundo o IPCC (Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas, na sigla em inglês), da ONU — essas medidas envolviam uma comunicação efetiva entre poder público e a população concentrada nas áreas de risco.
Mas a sequência de alertas, que envolvem desde os avisos a respeito das mudanças climáticas até a necessidade de repensar a ocupação do solo das grandes cidades, tem sido ignorada há anos, e não só naquela região.
As chuvas, como previsto, vieram, e o saldo até o momento é de quase 100 mortos — sem contar as dezenas de pessoas desaparecidas.
Após um rápido sobrevoo pela região, Jair Bolsonaro declarou que "infelizmente catástrofes acontecem". Em seguida foi embora.
A declaração tira o sujeito ativo da sentença e repete o que já ouvimos das autoridades na pandemia: que todos nós vamos morrer mesmo um dia e que a morte é consequência natural da vida. Ah, vá.
A passividade terceiriza para a figura da natureza a decisão de encurtar ou não nossa passagem por essa terra encharcada e já impactada pelo vírus.
O desastre no Recife é assistido como um filme repetido do que já se viu, desde o começo do ano, e em velocidade x2, em áreas afetadas pelas chuvas no sul da Bahia, em Minas Gerais e em Petrópolis, no Rio.
Na região metropolitana do Recife, a lama e o caos cantados por Chico Science atravessaram os espaços urbanos e fizeram questão de deixar à vista o hiato social entre a precariedade das áreas de risco, próximas a córregos e rios, e os bairros nobres de casas e prédios bem alicerçados.
Talvez a reação fosse outra, com reforço dos sistemas de alerta, se a chuva levasse para a lama também os empreendimentos de magnatas como os Bonfim, família fictícia (e de contornos reais) retratada por Kleber Mendonça Filho no filme "Aquarius", rodado a poucos km do epicentro da tragédia.
Recife, assim como Bahia, Rio e Minas, não estão, por mero azar, no caminho de um fenômeno fora da curva, mas de eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes e intensos, como alerta o físico Paulo Artaxo em entrevista ao jornal O Globo.
O diagnóstico é preciso e o tratamento, urgente.
Reforçar as equipes da Defesa Civil e repensar a ocupação das áreas de risco são algumas das medidas imediatas. Em outra ponta, avisa o especialista, é preciso reduzir para ontem as emissões de gases de efeito estufa e simplesmente brecar, até chegar a zero, o avanço do desmatamento. Essa era a promessa feita pelo Brasil na COP26 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2021), aliás.
Falta combinar com os amigos de Ricardo Salles.
Recife é um dos muitos capítulos de uma crônica da tragédia anunciada literalmente pelos ventos. Essa tragédia começa no aumento silencioso da temperatura das águas do oceano, passa pelo negacionismo climático e pela quase total incapacidade das autoridades de entenderem e se prepararem para lidar com as mudanças em curso.
O resultado até aqui é uma sucessão de catástrofes contadas e recontadas em forma de déjà-vu e pedidos para a natureza, tão pisoteada pelas botas humanas, pisar devagar em seu revide.
Essa catástrofe pode ser vista em duas perspectivas distintas que se encontram como num redemoinho. A tragédia do clima, a dimensão macro da mesma história, atravessa quem estiver no caminho. Os estilhaços são os corpos e relatos dos sobreviventes e das famílias igualmente devastadas. Unidos pelas pontas, esses estilhaços cobertos de lama e concreto formam hoje a nossa contribuição ao painel do clima.
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